Dia-a-dia de um distrito rural, doze concelhos e meia dúzia de pequenas cidades encravadas nas montanhas mais a norte de Portugal
23 de Julho de 2010

Este ano, no primeiro Sábado de Setembro, festeja-se, provavelmente, a última festa do Divino Senhor da Barca na Ermida de Santo Antão, junto ao rio Sabor. A construção da barragem vai deixar todo o vale inundado, mas dificilmente apagará as memórias ou a devoção das gentes que, todos os anos, ali iam à romaria. 

O novo local onde a capela ficará situada, o Alto do Rebentão, parece agradar à maioria dos fiéis, pois quando a barragem do Baixo Sabor estiver concluída, o local ficará cercado de água. Ainda assim, se poucos duvidam que a fé se perca, muitos evidenciam sentimentos dispares quanto à irrecuperável perda do mítico local. A pouco mais de um mês e meio da festa, possivelmente a última que se realizará junto ao rio Sabor, fomos ouvir as memórias dos habitantes de Parada, freguesia do concelho de Alfândega da Fé a que pertence a capela.

Junto a um antigo café que dava pelo nome de Santo Antão, debaixo de uma figueira, encontramos um grupo de populares da mesma geração – anos 30.

Todos eles guardam lembranças de uma infância passada à beira-rio que tinha como ponto alto a celebração da festa em honra do Santo Antão. A seis quilómetros da aldeia, ali iam a pé por caminhos onde apenas circulavam pessoas ou animais. Poucos tinham carro mas nem que tivessem, ali não se descia de outra forma. Havia os que ali permaneciam todo o ano, os que iam apenas ao fim-de-semana e os que chegavam de outros concelhos limítrofes, como Mogadouro ou Torre de Moncorvo, apenas para a romaria. Mas os de Parada eram os que ali passavam mais tempo. A festa preparava-se ao longo de todo o ano e cabia ao ermitão a responsabilidade de “guardar o local”.

Sérgio Ribeiro, de 74 anos, lembra-se bem desses tempos pois foi naquele vale que viveu durante 29 anos, enquanto o seu avô, ermitão, foi vivo.

“Ali ainda viveu muita gente. Os lavradores iam para lá trabalhar nas quintas. No Verão iam para lá conviver. É um local que marcou muito as pessoas daqui da aldeia de Parada”, contou.

Em criança, passava a semana na aldeia onde frequentava a escola primária e era ao fim-de-semana que tinha autorização para ir até ao vale onde diz que “andava como os ciganos”, numa alusão à liberdade que ali sentia. O seu irmão, António Joaquim Ribeiro, dois anos mais novo, não teve a mesma “sorte”. Os tempos eram duros para aquelas gentes e foi entregue a umas tias que o criaram. Ainda assim, ia ao vale amiúde e confessa que “gostava muito daquilo”.

“Nós éramos criados uns com os outros, tínhamos mais convivência, havia menos fartura e um bocadinho de pão dava para todos. Quando nos juntávamos ali todos, era uma festa”.

Saudosistas dos tempos passados, não sabem precisar a origem do culto, nem do local, mas acreditam que será muito, muito antigo. “A cantaria da capela veio de Carviçais num tempo em que nem havia caminhos. Não sei como terão feito isso”, comentou António Ribeiro.

O que consta é que a capela foi mandada construir há mais de 200 anos, por uma família de grandes posses, proprietária de muitas herdades, os Távoras, num local a que chamavam Poço da Barca. Seria ali que as pessoas e mercadorias atravessavam o rio numa barca, vindo daí o nome de Santo Antão da Barca.

Sobre o Santo Antão, há diferentes versões. Por um lado, a lenda diz que a capela construída pelos Távoras veio substituir outra mais antiga que já existia em honra de Santo Antão, um eremita egípcio que terá vivido no século III. Segundo os populares Santo Antão doou os seus bens aos pobres e dedicou-se a guardar porcos, sendo por isso que a sua imagem tem aos pés a figura de um destes animais.

Como quer que a fé e a devoção no Santo Antão tenha chegado a Trás-os-Montes, nomeadamente a Parada, o que é certo é que é conseguiu mobilizar toda aquela freguesia, que andava o ano todo a preparar a festa em sua honra, como agradecimento das “graças” concedidas.

Mas o culto chama ao local, ainda hoje, gente de toda a região: Carviçais, Felgar, Torre de Moncorvo, Valverde, Estevais, Meirinhos, Alfândega da Fé, Vilarchão, Cerejais, Picões, e até de Freixo de Numão.

Todos iam a pé ou nos machos, com as alforjas carregas com a merenda. A banda de música também ia pé e ali chegaram a tocar “duas e três bandas”, o que significa uma enorme despesa para os tempos que corriam, como contou António Ribeiro.

“Tínhamos que juntar dinheiro, pedir a uns e a outros, a festa gastava muito. Naquele tempo chegavam a ir três bandas de música, dois fogueteiros, ficava tudo muito caro. Toda a aldeia trabalhava para a festa, eram muito unidos”.

O mesmo recorda Manuel Garcia, de 76 anos, que só lamenta já não puder “beber, dançar e pular” como noutros tempos.

“Íamos para lá antes da festa, conviver, e só voltávamos no fim, à noite, cheios de sono, a comer os figos das figueiras da ladeira”, lembrou.

E a música, essa, vinha nos ouvidos, rematou Emília da Bárbara, de 74 anos.

“Vínhamos embora detrás da música, com o som nos ouvidos”.

Dos namoros que por lá se arranjavam, fala pouco, que no seu tempo eram outros os modos e não se “bailava” como agora.

“Andávamos a correr de volta da capela e diziam-nos: oh meninas, oh meninas, dêem-nos a sua graça. E nós respondíamos, a nossa graça anda aí no arraial”.

Nos tempos que vinham mais secos, porque no Verão, segundo contam, o rio sempre teve pouca água, “atravessava-se de um lado ao outro”, mas em anos mais secos, depositando toda a fé no Santo Antão, os populares levavam o andor a pé, subindo o caminho íngreme, para depois o descerem novamente.

“A muda só era feita de sete em sete anos, ou a intervalos menores se a seca fosse muito grande”, contaram.

E é por causa da seca e da pouca água que o rio leva, durante o verão, que toda aquela geração é unânime em dizer que “a barragem faz muita falta”.

“Eu fui ali criado, pertenço aquele local, mas a água faz muita falta”, apontou Sérgio Ribeiro.

Também Manuel Garcia lamenta a perda do emblemático lugar a que chamam Miragaia, mas diz-se “a favor da barragem” para que “haja água em abundância para todos”.

Quando o empreendimento for concluído, a água vai cobrir todo o local, até à ponte de Sardão-Meirinhos e ao Alto do Rebentão, o novo local onde a capela ficará situada. Ali dizem ser “o melhor sítio”.

“O Santo Antão tem de ficar de frente para a capela antiga, junto à água, tem de ser sempre junto à água”, dizia Emília Bárbara.

Manuel Garcia é outro dos que concorda com a solução encontrada e até considera que a mudança pode ser “boa”.

“Cá em cima fica mais perto, fazem uma nova capela, fica outra coisa”, considerou.

António Gouveia, de uma geração bem mais nova, (anos 60), concorda com esta perspectiva, embora se assuma pouco favorável à construção da barragem. Da infância guarda os tempos passados à beira-rio, nas colónias de férias da escola, organizadas ainda no tempo de Salazar.

“Ali dormíamos, brincávamos, nadávamos, pescávamos”, apontou. “Eu conheci o rio livre e também me sentia livre”.

Conformado, até porque a barragem já se encontra em construção, António vai escrevendo poemas, “era o rio da minha infância, que eu bem conheci. Sonhava-me nas cascalharias, também me sentia livre”. 

“A afinidade que tínhamos com aquele local era muito grande, era um local sagrado”, justifica, apontando, no entanto, que, “possivelmente”, a população até sairá beneficiada pois a capela já se encontrava muito “degradada” e “o passado acabou”.

A fé no Santo Antão, essa, será sempre inabalável porque apenas muda o local. À festa continuam a acorrer milhares de pessoas, dos três concelhos limítrofes e não só. Mudaram os tempos, “há mais fartura, menos convivência”, mas a fé, garantem, “será sempre a mesma”.

 

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