A capital mundial do marranismo
Carção, um vilarejo da região de Trás-os-Montes, no Norte de Portugal, próximo a Bragança e a poucos quilômetros da fronteira com a Espanha, é tido por alguns pesquisadores como a capital do marranismo. Seus cerca de seiscentos habitantes, na maioria idosos, são verdadeiros almocreves, pessoas que, desde a Idade Média até meados do século 20, se dedicavam ao transporte de cargas em animais, e descendentes de cristãos-novos. Eles carregam na memória o orgulho e o peso de serem descendentes de judeus que, perseguidos pela Inquisição portuguesa entre os séculos 16 e 18, foram obrigados a renunciar à fé judaica e se converteram ao cristianismo. Muitos de seus antepassados foram processados, acusados de conduta judaizante pelo Santo Ofício, condenados à morte no pelourinho e queimados por não abrirem mão de sua crença. Outros se converteram ao cristianismo para sobreviver. Ao todo, 250 dos moradores de Carção passaram, em seu tempo, pelos tribunais do Santo Ofício, e desses, 25 foram supliciados pelo fogo ou garroteados em público.
Nas férias de verão, Carção muda de fisionomia com o aumento da população, ao receber seus jovens, como é o caso de Paulo Lopes. Este descendente de marranos, que conheci de forma inusitada, recebeu-nos de braços abertos, acolhendo-nos como se fôssemos alguém de sua família há muito tempo esperado. Professor secundário, ele trabalha nos Açores e, nas férias, como muitos de seus companheiros de juventude, retorna de regiões distantes ou de outros países para visitar a família. Nos intervalos, dias de folga ou madrugada afora, dedica-se ao preparo de seu doutorado em História da Arte. E ainda encontra tempo para ser o editor da revista local, produzida pela Associação Cultural dos Almocreves de Carção, "freguesia" pertencente ao "concelho" de Vimioso.
O corpo editorial da revista Almocreve procura preservar e resgatar o passado histórico de sua gente. Os almocreves de Carção, no passado, utilizavam mulas de carga e andavam de terra em terra para vender mercadorias ou comprar peles de animais para serem tratadas e abastecer as fábricas de tratamento de peles (os pelames) e de cola (com o aproveitamento dos resíduos das peles) de forma a prover a região ou as fábricas do Porto, Covilhã ou Guimarães.
Fui parar em Carção de maneira totalmente inesperada; uma terra longínqua, da qual jamais ouvira falar e onde me senti em casa, entre familiares e amigos, com quem pude compartilhar histórias e afinidades de costumes e de tradição que me tocaram profundamente. Emergiu desse encontro um sentimento de irmandade, de sincronismo de ideias, difícil de descrever mas fácil de sentir. Algo que deve se assemelhar ao que Freud chamou de "arquitetura anímica", isto é, um conjunto de elementos psíquicos que "permite que os indivíduos de um determinado grupamento, coletividade, irmandade ou classe encontrem similaridades, familiaridades e se reconheçam como pertencentes a tal grupo ou comunidade, a despeito de histórias de vida totalmente díspares".
Tudo começou na missa de sétimo dia de um amigo cristão. Dirigi-me à igreja onde ocorreria o ato religioso e, lá chegando, encontrei-me com um Sr. Adriano, do qual jamais ouvira falar, e que lá estava para prestar as últimas homenagens ao falecido. A igreja ainda estava vazia, e ele, vestido de forma elegante, procurava o interruptor de luz para clarear o recinto.
Um tanto constrangido, perguntei-lhe de quem era a missa, pois havia o risco de chorar por equívoco a morte de um estranho, decerto também merecedor de minha compaixão. Ele me contou que é escritor, membro da Casa do Poeta de São Paulo. Contou-me sobre seus últimos ensaios. E eu, para não me sentir passado para trás, contei-lhe que também havia publicado livros, e que, no momento, estava interessado em estudar Maimônides. Adriano se disse descendente de marranos e narrou a história comovente de seus pais e familiares, provenientes de Carção, cujos ancestrais eram cristãos-novos. Descreveu o modo como eles viviam e os resíduos de comportamentos judaicos presentes nos hábitos e costumes de sua gente, muitos deles com cabelos ruivos e pele clara, que costumavam fechar as janelas às sextas-feiras ao entardecer, acender velas e cobrir os espelhos da casa por ocasião de morte na família. Disse-lhe que sou judeu e ele prosseguiu, entusiasmado, relatando como a Inquisição portuguesa perseguiu os judeus de Carção, principalmente entre os séculos 16 e 18. Deste encontro nasceu uma amizade e a troca de muitas informações, que culminaram com a apresentação, por e-mail, de Paulo Lopes, um amigo de Adriano. Resolvi, então, conhecer Carção.
Minha esposa Ruth e eu fomos de carro, da linda e romântica cidade do Porto até Bragança. Assim que chegamos, Paulo Lopes veio nos receber e nos contou, durante duas horas, sem nenhuma interrupção, sobre sua vida e o vilarejo de Carção. Combinamos um encontro na aldeia, às 12h do dia seguinte, pois ele havia também marcado com outros dois amigos portugueses, diante da casa dos pais de Adriano. Chegamos uma hora antes do combinado e tivemos tempo para fazer um giro a pé pela região, onde a vida rural predomina, entre o verde e o bege de um terreno árido e pedregoso, de vegetação rala entre oliveiras, hortaliças, áreas de pastoreio, indústrias e artesanatos rudimentares. Encontramos, pelas ruas de terra ou de pedra, mulas carregando produtos agrícolas, semelhantes às que eram conduzidas pelos almocreves de um passado distante, quando os vendedores ambulantes, judeus e depois marranos, vendiam queijo, sal, peixe, farinha, azeite, cereais e lã.
Os judeus e marranos dominavam o comércio local e dos arredores e, montados em mulas ou machos de carga, caminhavam pela região, transportando e fazendo comércio de peles. A indústria do curtume era realizada também por eles que, para amaciar a pele, utilizavam uma técnica rudimentar a partir do uso de excrementos de cães, que coletavam pelos caminhos. Isto gerava escárnio por parte dos cristãos, que ofendiam a honra e a dignidade dos judeus e marranos que transitavam por ali - o que fica patente no seguinte soneto popular:
Caga perro, caga cão, P'ra curtir o cordovão;
Caga cão, caga perro, P'ra curtir o bezerro.
Outros judeus eram artesãos ou mercadores ambulantes de bacalhau, arroz, azeite, oferecendo de casa em casa seus artigos, ampliando significativamente o comércio da região. Aos cristãos cabia a lavoura.
Paulo conta-nos um pensamento popular sobre a riqueza dos judeus de Carção: "A um judeu nada mais faltava para fazer fortuna que uma libra e uma mula e, quando aqui nascia algum [judeu], logo nascia uma mula, tão habitual era a atividade deles como almocreves".
Já na parte baixa da aldeia, passamos pela casa da senhora Mathilde Jerónimo que estava trabalhando em um tear manual, tão antigo e vivido quanto ela. Com a pele enrugada pelos anos, talvez mais de setenta, pela aridez da terra, do frio e do sol, tecia uma colcha, segurando em uma das mãos uma lançadeira (tipo de agulha) que também é, juntamente com a menorá, ou candelabro de sete braços característico do judaísmo, um dos símbolos da recém-criada bandeira de Carção, representando a capacidade de trabalho do povo e o amor pelo artesanato. O espaço era exíguo, de paredes e piso de pedra, uma antiga estrebaria ou armazém de trigo e feno, separado por um teto de madeira da parte superior da casa nos séculos da Inquisição. A parte social e os dormitórios, principalmente no inverno, eram aquecidos pela dissipação do calor dos animais e do feno. Imaginei como aquilo se parecia à realidade da aldeia judaica de onde vieram minha mãe e avós maternos, Yedenetz, na antiga Bessarábia.
Prosseguimos andando pela parte baixa da povoação, onde os judeus se aglutinavam numa espécie de gueto depois habitado pelos marranos, termo pejorativo com que eram chamados os cristãos-novos, cujo significado é "sujos" ou "porcos". Cruzada a "rua do meio", nome da travessa que separava os judeus dos cristãos, seguimos em direção à casa que havia pertencido aos familiares de Adriano. Paulo nos explica que acima da "rua do meio" viviam os cristãos e, abaixo, os judeus ou marranos.
Em Carção ainda existem algumas casas não recobertas de argamassa, em cujas paredes de pedra podem ser percebidas depressões onde os judeus colocavam mezuzót, pequenos rolinhos manuscritos que contêm um trecho bíblico que fala sobre o Deus único. É um costume judaico tocá-los com os dedos e depois beijá-los, ao entrar e sair de casa. Foi possível ver inscrições de cruzes com uma base triangular, deixadas pelos cristãos-novos como forma de disfarce para não serem importunados pelas autoridades religiosas.
Mais adiante, chegamos ao local marcado para o encontro. Era diante de ruínas de pedra, situadas entre duas casas já reformadas. Em meio a essas ruínas, encontramos uma laje sobre uma porta, com a inscrição "1653" e, em alto-relevo, um grande Leão de Judá deitado e duas aves, provavelmente pelicanos. Junto, duas cruzes com base triangular. Andamos mais um pouco e encontramos a mãe de Paulo, dona Celene Fernandes, vestida com roupa de trabalho, que veio ver o filho e seus amigos - uma pausa na atividade de vendedora de peixes da região. Cheia de vitalidade, aspecto saudável e alegre, com cara de quem não tem medo do trabalho, conversamos como se fôssemos velhos conhecidos. Nesse momento, ouve-se uma barulheira infernal de buzina e alto-falante vindos de uma caminhonete. Era o concorrente de Celene, vindo de outro vilarejo oferecer peixe aos moradores de Carção. Ela riu, não se importando com a invasão, e com bom humor disse que cada um está lutando para sobreviver, e que há lugar para todo mundo. "Numa outra vez irei vender meu peixe na terra dele", disse. Lembrei-me de minha mãe em casa usando um avental parecido enquanto cuidava de nós e da cozinha.
Na hora e local combinados aparecem os amigos de Paulo, Maria Fernanda Guimarães e Antonio Júlio Andrade. Ambos os pesquisadores que estavam terminando de revisar o livro que seria lançado dentro de alguns dias. Seu título: Carção - a Capital do Marranismo.
Tudo aquilo me parecia surpreendente. Parecia um sonho estar naquela terra distante e ao mesmo tempo tão próxima, falando com pessoas desconhecidas, mas ao mesmo tempo familiares. Algo das transmissões transgeracionais ali estava presente, não apenas como lembranças, mas com muita emoção.
Fomos todos, em seguida, almoçar no restaurante da dona Alzira, onde saboreamos uma deliciosa bacalhoada - prato típico dos marranos de Carção. Durante o almoço, a conversa sobre judeus e marranos prosseguiu; uma das pessoas disse que por ali só há cristãos-novos e a outra, de pronto, afirmou: "Não senhor, aqui só há judeus".
Fernanda também nos contou de seus antepassados judeus, dos processos a que foram submetidos, das torturas e da garra dos judeus que lutaram para preservar sua fé às escondidas. Ela recorda o desaparecimento dos sambenitos da igreja matriz, onde ficavam expostas essas mantas colocadas pela cabeça à semelhança de um saco. O Tribunal do Santo Ofício obrigava os condenados a usarem essa veste e a desfilarem com ela pelas ruas antes de cumprirem a sentença no pelourinho ou na fogueira, quando eram desnudados. Nela era pintada a imagem da pessoa condenada, rodeada de cães, serpentes e diabos, que ficaria exposta na igreja após sua morte e queima do corpo. Sua função era a de submeter o povo e, em especial, os cristãos-novos condenados por heresias ou atitudes consideradas judaizantes, para que ninguém esquecesse o mal que eles fizeram à cristandade. Seu desaparecimento da igreja, levados supostamente pelos judeus, foi interpretado como um ato expressivo de coragem, de luta e de fé judaicas para defender-se da opressão da Igreja. Estes pesquisadores citam que "foi registrada nessa aldeia a existência de pelo menos três livros judaicos, proibidos por lei".
Esse grupo de idealistas deseja preservar e resgatar as lembranças daquilo que não está nas imagens, mas nos sentimentos, nas memórias encriptadas de um passado que não pode ser esquecido. Eles desejam erguer um memorial em homenagem àqueles que foram processados ou mortos pela Inquisição portuguesa. Pretendem construir na entrada da cidade uma grande menorá com os nomes das vítimas da intolerância da Igreja e de outros interesses, para que o tempo não apague a História. Querem resgatar as verdades, desfazer as injustiças e apagar as sombras de dor e culpa que os perseguem. São atos de reparação para poder se libertar e se religar a seus ancestrais judeus pela cultura da coexistência entre as diferenças. Durante minha rápida passagem por esse lugar da história judaica, tive vontade de participar dos anseios dessa gente, tão desconhecida e tão familiar.
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