Ameaçada de extinção, a Língua Mirandesa conseguiu permanecer num território de 500 quilómetros quadrados, marcado pela despovoação, à conta da interioridade. A especificidade de ser uma Língua minoritária que nunca esteve associada a movimentos independentistas, como acontece em outros países, levou a que, há onze anos atrás, todos os deputados com assento na Assembleia da República votassem favoravelmente a sua oficialização, deixando, assim, de ser designada como dialecto.
De tradição oral, foi longa e intensa a luta para conseguir chegar a uma Convenção Ortográfica que permitisse a tradução de livros para mirandês, a escrita em mirandês e o próprio ensino. Hoje, depois de tantos anos, são cada vez mais os interessados em aprender o falar de um povo orgulhoso da sua cultura. A par com os mirandeses que têm cada vez mais “proua” na “lhéngua”, chegam agora portugueses de todos os pontos do país interessados em aprender aquela que é a segunda língua oficial de Portugal.
Foi isso que aconteceu, na semana passada, com a promoção do Curso Intensivo de Mirandês, promovido pela Associação Recreativa da Juventude de Mirandesa, de 21 a 24 de Julho. Oriundos de todo o país e do concelho aderiram à iniciativa para assim aprenderem a especificidade de uma cultura muito própria da região transmontana. Foi o caso de Maria Martins ou de Manuel Jacoto, ambos do concelho, que quiseram participar para aprender mais, embora admitissem saber “um cachico”.
Já Domingas Loureiro, de Ílhavo, veio com um grupo de amigas, à procura de aprender mais sobre a própria cultura portuguesa e Ana Sofia David partiu de Lisboa, onde trabalha, para assim colmatar o que considera uma “lacuna” na sua formação de docente. “Tinha muita curiosidade em saber como seria a língua, também sentia essa lacuna na minha formação. Acho que a língua deveria ser mais divulgada a nível nacional visto que é a segunda língua oficial”, comentou.
Domingos Raposo abriu o curso com a oficina de escrita e oralidade, embora advertindo que, numa só manhã, seria muito difícil ensinar a Língua. Ainda assim, deu para aprender o suficiente para não comparar o Mirandês ao Espanhol, como continua a suceder.
Com um tronco linguístico comum – o Latim -, a Língua Mirandesa distingue-se do Português por provir do Asturo-leonês, enquanto que a língua mãe provém do Galaico.
A influência do antigo reinado asturo-leonês fez com que, aquando da independência de Portugal, Miranda do Douro continuasse isolada, recebendo mais influências dos caminheiros de Santiago, dos pastores dos lados de Leão, dos contrabandistas ou dos ceifeiros. A evolução histórica e política do país manteve o isolamento do concelho o que, por seu lado, ajudou a manter a Lhéngua nas Terras de Miranda, como apontou Domingos Raposo.
“O Mirandês salvou-se porque estivemos isolados, devido à interioridade desta zona”, contou perante uma plateia de alunos estupefactos.
No entanto, foram várias as tentativas de extinção da Língua. No século XVI, com a ascensão de Miranda do Douro a cidade foram muitos os letrados que se radicaram ali e que tentaram combater o mirandês.
Anos mais tarde, já no século XIX, a língua foi dada a conhecer ao mundo por José Leite Vasconcelos, um português que, no ensino superior, teve como amigo e companheiro Branco Castro, natural de Duas Igrejas. Curioso com as histórias que o amigo contava, quis ir conhecer “in loco” a realidade. José Leite Vasconcelos foi o primeiro a escrever em mirandês, baseado apenas na fonética e na pronúncia de Duas Igrejas. Foi ele que deu a conhecer ao mundo a existência de uma segunda língua em Portugal, escrevendo a obra “Dialecto Mirandês”, uma investigação premiada a nível europeu.
Mais tarde, já nos anos 50 (século XX), com a construção das barragens do Douro e a vinda de milhares de trabalhadores, o Mirandês adquiriu um sentido “pejorativo”. “Voltou-se a dizer que os mirandeses falavam mal e a língua deixou praticamente de ser falada, as pessoas tinham vergonha”, contou Domingos Raposo.
Ainda assim, muitos mirandeses, orgulhosos da sua cultura materna, lutaram pela dignificação e reconhecimento da Língua que aprenderam de berço. Júlio Meirinhos, era então presidente da câmara quando, nos ano 80, lançou o desafio a Domingos Raposo de apresentar ao Ministério da Educação argumentos válidos para que a disciplina constasse dos currículos escolares do concelho, como disciplina opcional.
“Na altura achei utópico”, confessou Domingos Raposo, pois nunca imaginou que o Ministério da Educação abrisse uma excepção. A surpresa foi a resposta positiva e, a partir de 1986/87, o Mirandês passou a ser uma disciplina opcional dos conteúdos programáticos leccionados no concelho.
Anos mais tarde, num Seminário Linguística organizado em Miranda, concluiu-se que era necessário estabelecer uma Convenção Ortográfica, eliminando as regras mais complicadas e reduzindo a variação gráfica existente, própria de uma língua que sempre foi oral. Na Convenção estabeleceu-se ainda as variantes da Língua: o Mirandês raiano; central e sendinês.
Hoje, passados 24 anos de ensino, o balanço é muito positivo. “Avançamos muita semente e muita dela germinou, tanto mais que conseguimos fazer uma convenção ortográfica e conseguimos que se deixassem de lado inibições que tinham ao dizer que a língua não tinha importância”, reconheceu.
No universo de alunos que frequentam o Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro, 50 por cento frequenta a disciplina, mostrando orgulho e apego às raízes. São motivos que fazem Domingos Raposo acreditar que toda a luta de um povo valeu a pena. “Não encontro que a língua esteja moribunda. A juventude mirandesa tem “proua” em divulgar e tentar falar a língua e isso está patente com a promoção deste curso”.