Dia-a-dia de um distrito rural, doze concelhos e meia dúzia de pequenas cidades encravadas nas montanhas mais a norte de Portugal
30 de Setembro de 2010

Sob o mote das Jornadas Europeias do Património, seguimos a especialista Emília Nogueira num roteiro dedicado à presença dos jesuítas e à linguagem barroca em Bragança. Uma viagem ao século XVII, a uma cidade que ficaria marcada, até na arquitectura, pelos valores transmitidos pela Companhia de Jesus

O encontro estava marcado para as três da tarde, junto ao Cruzeiro da Sé, em Bragança. O motivo: celebrar as Jornadas Europeias do Património, este ano sob o tema – “Património, Mapa da História”.

A convite do Museu Abade de Baçal, Emília Nogueiro acedeu a organizar um roteiro dedicado especialmente à presença dos jesuítas na cidade de Bragança, uma temática que a investigadora estudou profundamente e que foi publicada, há uns anos, na revista Brigantia.

Como ponto de partida tomemos o final do século XVI, altura em que a Igreja é construída. A cidade localizava-se, então, no que hoje conhecemos como cidadela e chegava apenas a meio da rua Direita. A actual Sé era um local ermo e descampado onde nada existia à excepção de uma cruz de madeira que, no século XVIII, seria substituída pelo actual cruzeiro de granito que hoje conhecemos.

A Igreja tinha, então, sido construída para acolher uma Ordem feminina religiosa de monjas clarissas, tradicionalmente filhas de famílias ricas a cidade. No entanto, a localização não terá agradado por estar muito afastado da cidade e o imóvel permaneceu por ocupar até à vinda da Companhia de Jesus. Numa breve explicação, recorde-se que a Companhia de Jesus nasceu por intervenção de Santo Inácio de Loyola, em plena época da Contra-Reforma, como resposta ao crescente Protestantismo. A missão dos jesuítas vai ser a de trazer para a Igreja Católica novos fiéis, não deixando perder os crentes. Mas, aqui na região transmontana, a Companhia de Jesus vai ter uma tarefa acrescida. É que após a expulsão da comunidade judaica, no reinado de D. Manuel, em finais do século XV, muitos fugiram para países da Europa, mas outros preferiram recolher-se ao interior do país. É histórica a presença das comunidades judaicas na região de Bragança, Vimioso, Argozelo, Carção, até Belmonte, e, essa, vai ser outra das preocupações dos jesuítas. Numa altura em que a maioria da sociedade não sabia ler, nem escrever e em que todo o cerimonial era realizado em latim, os jesuítas vão encontrar na linguagem simbólica uma forma de evangelização que, num olhar contemporâneo, não é fácil de desmontar.

 


Simplicidade exterior, riqueza (de) interior

Antes de entrarmos na Igreja, Emília Nogueiro chama a atenção para a linha sóbria e simples da arquitectura do imóvel, pois, ainda que não tenha sido construído seguindo os preceitos dos jesuítas, adaptou-se perfeitamente à mensagem que eles pretendiam transmitir e que apelava a um comportamento simples, sério, sensato e comedido, com um interior rico, por oposição à riqueza do aparato.

É, por isso, no interior da Igreja que vamos encontrar toda a exuberância e dourado que caracteriza o estilo barroco. O trabalho minucioso do retábulo do altar-mor e todo o dourado que vemos em volta ainda hoje espantam. Diz-nos a guia que em toda a Europa, Portugal é o único país que, ainda hoje, usa folhas de ouro com extremo grau de pureza, de 24 quilates. E se, na época, Bragança já tinha assim decoradas as suas igrejas é porque, na altura, o Brasil ainda fazia parte do território português e ali tinham sido descobertas várias jazidas de ouro que permitiram que todas as Igrejas, desde Lisboa ao interior, tivessem os seus retábulos talhados com folhas de ouro.

Depois temos os Santos e o culto dos relicários, modelos de santidade que os jesuítas consideravam idóneos e que eram disseminados por toda a Europa. Na antiga Igreja dos Jesuítas ainda permanecem alguns exemplares, como a Santa Úrsula, um relicário de cabelos loiros, uma das primeiras Santas do Cristianismo.

Emília Nogueiro conta-nos a história: numa fuga para a Polónia, acompanhada por mulheres da sua corte, Santa Úrsula e as companheiras são capturadas por Átila, o famoso guerreiro huno, um pagão que não se tinha convertido ao Cristianismo. “Elas são aliciadas para que deixem a cultura cristã e se casem com os bárbaros, mas preferem ser assassinadas a deixar a sua religião”. Daqui nasce o culto de Santa Úrsula e das onze mil virgens, um dos paradigmas de mulher que os jesuítas vão impor – o da mulher que prefere o seu próprio sacrifício
à renúncia da fé.

Novamente no exterior, podemos reparamos nos claustros e na galilé de acesso à torre sineira, construção já da responsabilidade da Companhia de Jesus. Com esta construção, os jesuítas pretendiam que se pudesse tocar o sino sem interromper a missa. É preciso recordar que, na altura, o sino era a principal forma de organização do tempo e, conforme se pode ver na construção, só em 1940 é que ali é colocado um relógio. “Até então quem marcava o ritmo do tempo era o sino”.

Todo o complexo habitacional onde os jesuítas dormiam e onde tinham em funcionamento a sua escola foi transferido para as mãos do Estado, com a implementação da República, há cem anos atrás. Hoje em dia, é ali que funciona o Centro Cultural, o Conservatório de Música e a Biblioteca Municipal, sendo que a Diocese detém apenas tutela sob a Igreja.

Da antiga Igreja dos Jesuítas, a proposta é para seguir até ao Museu Abade de Baçal, onde se encontra uma colecção de relicários e um tecto setecentista que se acredita ter vindo da Companhia de Jesus.

Pelo caminho, a guia aponta como é curioso reparar na forma como os jesuítas influenciaram a arquitectura de então, permanecendo a sobriedade, as paredes de alvenaria branca pontuadas com granito em apenas algumas zonas.

“Uma construção austera, adaptada à região, também ela austera pelo clima e por todas estas particularidades, para além de ser uma região pobre que não podia despender grandes fortunas em aparato”, explicou Emília Nogueiro.

Já no Museu Abade de Baçal, a historiadora recorda que para ali foi transferida a sede da Diocese de Bragança-Miranda, no final do século XVIII, uma saída que ainda hoje é polémica pela suposta perda de importância que tal representou para as Terras de Miranda. Ao sair de lá o bispo, veio com ele toda uma corte que o acompanhava e que prestava um conjunto de serviços. Essa transferência pressupôs que ali se realizassem obras, mas a arquitectura continua a repetir o esquema que podemos observar na Igreja da Sé e que é marcado pela simplicidade exterior.

 


Um tecto cheio de significado

O que nos leva ao Museu Abade de Baçal é a observação do tecto setecentista em caixotões, uma obra “maior” da Arte Sacra transmontana e que, ainda hoje, não se sabe muito bem se veio ou não da Igreja da Sé, quem a encomendou e quem a terá pintado. Tudo isso, também, não tinha qualquer relevância. O importante, aqui, é a mensagem que os jesuítas queriam passar e que, hoje, passados 200 anos, nos é difícil de entender. Emília Nogueiro dá algumas pistas. Estudiosa desta grande obra, a especialista indica que muitas são as leituras a explorar. À luz dos jesuítas, a proposta de leitura é de uma Bragança “muito complicada em termos sociais, com uma abrangência de credos muito maior do que a que podemos imaginar, em que a maioria da sociedade é analfabeta, com medo de Castela e afastada de Lisboa”.

Os quatro painéis centrais em que sobressaem quatro anjos é o ponto de partida por onde se deve começar a ler a mensagem “Cristológica”, ou seja, baseada na imagem de Cristo. São 48 caixotões que ilustram várias temáticas, desde animais, flores, caçadores, aves. Nenhuma temática é repetida e toda a mensagem vai no sentido de identificar os vícios e as virtudes do ser humano, com incidência nos vícios, que é o que os jesuítas pretendem minimizar. Um exemplo é a imagem bem criativa de um macaco acorrentado. “O macaco era, como hoje, associado à brincadeira, mas também ao vício e a tudo o que é excessivo. O facto de estar acorrentado significa que os vícios são controláveis”, explicou Emília Nogueiro.

Depois há as imagens de flores belas, mas perecíveis porque “tudo o que é material é perecível e só o espiritual perdura”.

Toda a riqueza da obra remete para a cultura jesuíta, que era quem tinha o poder e respondia à cultura da elite transmontana, embora permaneçam mais dúvidas do que certezas. Esta não era uma obra popular, mas seguia um conjunto de modelos que, na altura, todos saberiam identificar, “tal como hoje nos é fácil identificar o desenho de uma marca comercial”.

As pistas para descobrir mais sobre o património, a história e a nossa cultura foram lançadas. Resta agora, a cada um de nós, saber melhor valorizar cada pedaço do “mapa” da nossa História.

 

Roteiros do “História e Arte”

 

A iniciativa do realizar este percurso partiu do Museu Abade de Baçal como forma de comemorar as Jornadas Europeias do Património. Daí ao desafio lançado a Emília Nogueiro foi um passo. É que, habitualmente, Emília Nogueiro propõe, no seu espaço “História e Arte”, a realização de percursos pelo património histórico e artístico da região. Licenciada em História, a guia é tem uma especialização em Museologia que visou, precisamente, a análise iconográfica do tecto setencentista em caixotões do Museu Abade de Baçal.

Pese embora o deleite e espanto de todos quantos acompanharam o percurso, Emília confessa que é difícil atrair o público local para a realização de visitas guiadas pelo património da sua cidade. Quando tal acontece, o espanto e a surpresa são gerais, mas, ainda assim, é o público espanhol quem mais procura este tipo de serviço.

 

publicado por Lacra às 09:00
31 de Janeiro de 2010

 

O coordenador do projeto, António Amorim, do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP), disse à agência Lusa que a equipa de investigadores não aceita nem a decisão da FCT nem os argumentos do júri.

António Amorim realçou que este 'chumbo' pode pôr em causa a continuação de um estudo inovador sobre comunidades judaicas de Bragança, cujos resultados preliminares foram publicados recentemente no American Journal of Physical Anthropology (Revista Norte-americana de Antropologia Física).

Nesse estudo, a equipa de cinco investigadores portugueses detetou linhagens típicas do Próximo Oriente dez vezes mais frequentes do que no resto do país em comunidades do distrito de Bragança que se identificam como sendo de origem judaica.

No projeto submetido à FCT, intitulado Traçando a história dos Judeus Sefarditas pela genética: criptojudeus e a segunda diáspora, os avaliadores consideraram que a apresentação deste tipo de projetos «cria sérios problemas a todos os níveis - filosófico, ético, político, religioso e histórico».

«Um estudo genético deste tipo abre a porta a toda a espécie de manipulação ideológica», referem os avaliadores, que dizem temer também «danos morais e intelectuais» de «extensão considerável» em comunidades «rurais e frágeis».

O projeto envolveria 16 investigadores, 10 dos quais doutorados, e cinco unidades de investigação: IPATIMUP, Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Centro de Estudos Sefarditas 'Alberto Benveniste', Centro de Investigação em Antropologia da Universidade de Coimbra e Society of Crypto-Judaic Studies.

 

Lusa / SOL

10 de Dezembro de 2009

Comunidades judaicas da região de Bragança apresentam uma elevada diversidade genética, apesar das vicissitudes da sua história, segundo um estudo inovador publicado numa revista norte-americana de antropologia física.

A conclusão constituiu uma surpresa para a equipa de investigadores, coordenada por António Amorim, do Instituto de Patologia e Imunologia da Universidade do Porto (IPATIMUP), tendo em conta o esperado isolamento das referidas comunidades, que viveram longos períodos de clandestinidade.

As perseguições da Inquisição e, mais recentemente, o ambiente anti-semita vigente até ao final da Segunda Guerra Mundial fariam supor que essas comunidades mostrassem na actualidade uma diversidade genética muito baixa, resultante do seu pequeno efectivo e de uma reduzida interacção com a população circundante.

Este estudo, o primeiro realizado em Portugal nessas comunidades com base no cromossoma Y, ou seja, de linhagens exclusivamente masculinas, incidiu em 57 indivíduos de origem judaica reconhecida tanto por si próprios como pela comunidade, e residentes em Carção, Vilarinho dos Galegos, Argozelo e nas cidades de Bragança e Mogadouro.

"Para nossa surpresa, a diversidade genética dessa amostra revelou-se mesmo superior à da população portuguesa em geral", disse António Amorim à agência Lusa.

Além disso, acrescentou, "os tipos de linhagens que mostraram corresponde a uma relativa baixa frequência daquela que é típica da Ibéria e à abundância de linhagens típicas de populações do Próximo Oriente, nomeadamente de populações judaicas".

Assim, "enquanto na população portuguesa em geral há 60 por cento de indivíduos pertencentes ao mesmo grupo de linhagens a que chamamos ibéricas, ou pelo menos típicas da Europa ocidental, no caso destas comunidades judaicas não chega a 30 por cento" assinalou.

Por outro lado, prosseguiu, "as linhagens referidas como típicas do Próximo Oriente, vestigiais na população portuguesa em geral, são dez vezes mais frequentes nestas comunidades".

Segundo as conclusões do trabalho, publicado no American Journal of Physical Anthropology, "as comunidades estudadas conseguiram manter alguma identidade e não perder diversidade ao longo do tempo", graças a uma estratégia de cruzamentos que não teve efeito estrangulador na diversidade genética existente.

A situação observada contrasta com a registada noutros estudos com a participação deste investigador realizados em Belmonte, onde praticamente só subsiste uma única linhagem feminina, o que significa que houve muita endogamia e consequente redução da diversidade original.

Nesta investigação participaram também Leonor Gusmão (IPATIMUP), Verónica Gomes (IPATIMUP e Universidade de Santiago de Compostela) e Inês Nogueiro e Licínio Manco, do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra.

Especialista em genética populacional, António Amorim coordena na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto um mestrado em genética forense e participa em programas doutorais de biologia, genética e evolução.

 

Fonte: I Online

publicado por Lacra às 12:01
22 de Abril de 2009

 De 1 a 3 de Maio a vila de Vimioso acolhe as II Jornadas de História Local sobre o tema "Judaísmo - Marranísmo, duas faces de uma identidade".

A primeira iniciativa do género foi realizada no ano passado, altura em que foi proposto criar uma Rota dos Judeus que potencie a herança judaica e marrana existente em Carção, Bragança, Chacim, Vila Flor, Mogadouro e noutras terras do distrito.

O evento é organizado pela Associação Cultural dos Almocreves de Carção e, este ano, irá abordar os seguintes temas:

1 de Maio

  •  Os cristãos-novos e o poder - século XVIII, por António Borges Coelho 
  • Sam marranos os que marram nossa fee, por José Alberto da Silva Tavim
  • Regimentos Inquisitoriais, por Lúcia Alexandra Ferreira
  • Os agentes do Santo Ofício em Trás-os-Montes (1570-1821), por Fernanda Olival
  • Judaísmo, Inquisição e sequestro de bens em Trás-os-Montes, por Isabel Braga
  • Apresentação da obra Dicionário do Judaísmo Português, da Editorial Presença

2 de Maio

  • Cristãos-novos e marranos transmontanos, por Elvira Mea
  • Vimioso anos de 1650 - Uma rede de passadores de judeus, por Maria Guimarães e António Andrade
  • Um olhar sobre o Auto da Fé - espaços e representações, por João Dias
  • Vozes que chegam ao céu: Da origem e evolução da Liturgia criptojudaica portuguesa, por Inácio Steinhard
  • O judeu na literatura e na linguagem popular, por Lúcia Mucznik
  • A diáspora judaica, por Abraham Haim
  • De Trancoso a Hamburgo, o percurso das famílias Carlos e Mendes de Brito, por Florbela Frade
  • Judeus em Portugal: os desafios da Liberdade, por Esther Mucznik
  • Porque decidi ser judeu?, por Luciano Moura
  • Les derniers marranes, filme realizado por Frédéric Brenner

3 de Maio

  • Visita a locais de presença judaica - marrana em Carção e Argozelo

A capital mundial do marranismo

Carção, um vilarejo da região de Trás-os-Montes, no Norte de Portugal, próximo a Bragança e a poucos quilômetros da fronteira com a Espanha, é tido por alguns pesquisadores como a capital do marranismo. Seus cerca de seiscentos habitantes, na maioria idosos, são verdadeiros almocreves, pessoas que, desde a Idade Média até meados do século 20, se dedicavam ao transporte de cargas em animais, e descendentes de cristãos-novos. Eles carregam na memória o orgulho e o peso de serem descendentes de judeus que, perseguidos pela Inquisição portuguesa entre os séculos 16 e 18, foram obrigados a renunciar à fé judaica e se converteram ao cristianismo. Muitos de seus antepassados foram processados, acusados de conduta judaizante pelo Santo Ofício, condenados à morte no pelourinho e queimados por não abrirem mão de sua crença. Outros se converteram ao cristianismo para sobreviver. Ao todo, 250 dos moradores de Carção passaram, em seu tempo, pelos tribunais do Santo Ofício, e desses, 25 foram supliciados pelo fogo ou garroteados em público.

Nas férias de verão, Carção muda de fisionomia com o aumento da população, ao receber seus jovens, como é o caso de Paulo Lopes. Este descendente de marranos, que conheci de forma inusitada, recebeu-nos de braços abertos, acolhendo-nos como se fôssemos alguém de sua família há muito tempo esperado. Professor secundário, ele trabalha nos Açores e, nas férias, como muitos de seus companheiros de juventude, retorna de regiões distantes ou de outros países para visitar a família. Nos intervalos, dias de folga ou madrugada afora, dedica-se ao preparo de seu doutorado em História da Arte. E ainda encontra tempo para ser o editor da revista local, produzida pela Associação Cultural dos Almocreves de Carção, "freguesia" pertencente ao "concelho" de Vimioso.

O corpo editorial da revista Almocreve procura preservar e resgatar o passado histórico de sua gente. Os almocreves de Carção, no passado, utilizavam mulas de carga e andavam de terra em terra para vender mercadorias ou comprar peles de animais para serem tratadas e abastecer as fábricas de tratamento de peles (os pelames) e de cola (com o aproveitamento dos resíduos das peles) de forma a prover a região ou as fábricas do Porto, Covilhã ou Guimarães.

Fui parar em Carção de maneira totalmente inesperada; uma terra longínqua, da qual jamais ouvira falar e onde me senti em casa, entre familiares e amigos, com quem pude compartilhar histórias e afinidades de costumes e de tradição que me tocaram profundamente. Emergiu desse encontro um sentimento de irmandade, de sincronismo de ideias, difícil de descrever mas fácil de sentir. Algo que deve se assemelhar ao que Freud chamou de "arquitetura anímica", isto é, um conjunto de elementos psíquicos que "permite que os indivíduos de um determinado grupamento, coletividade, irmandade ou classe encontrem similaridades, familiaridades e se reconheçam como pertencentes a tal grupo ou comunidade, a despeito de histórias de vida totalmente díspares".

Tudo começou na missa de sétimo dia de um amigo cristão. Dirigi-me à igreja onde ocorreria o ato religioso e, lá chegando, encontrei-me com um Sr. Adriano, do qual jamais ouvira falar, e que lá estava para prestar as últimas homenagens ao falecido. A igreja ainda estava vazia, e ele, vestido de forma elegante, procurava o interruptor de luz para clarear o recinto.

Um tanto constrangido, perguntei-lhe de quem era a missa, pois havia o risco de chorar por equívoco a morte de um estranho, decerto também merecedor de minha compaixão. Ele me contou que é escritor, membro da Casa do Poeta de São Paulo. Contou-me sobre seus últimos ensaios. E eu, para não me sentir passado para trás, contei-lhe que também havia publicado livros, e que, no momento, estava interessado em estudar Maimônides. Adriano se disse descendente de marranos e narrou a história comovente de seus pais e familiares, provenientes de Carção, cujos ancestrais eram cristãos-novos. Descreveu o modo como eles viviam e os resíduos de comportamentos judaicos presentes nos hábitos e costumes de sua gente, muitos deles com cabelos ruivos e pele clara, que costumavam fechar as janelas às sextas-feiras ao entardecer, acender velas e cobrir os espelhos da casa por ocasião de morte na família. Disse-lhe que sou judeu e ele prosseguiu, entusiasmado, relatando como a Inquisição portuguesa perseguiu os judeus de Carção, principalmente entre os séculos 16 e 18. Deste encontro nasceu uma amizade e a troca de muitas informações, que culminaram com a apresentação, por e-mail, de Paulo Lopes, um amigo de Adriano. Resolvi, então, conhecer Carção.

Minha esposa Ruth e eu fomos de carro, da linda e romântica cidade do Porto até Bragança. Assim que chegamos, Paulo Lopes veio nos receber e nos contou, durante duas horas, sem nenhuma interrupção, sobre sua vida e o vilarejo de Carção. Combinamos um encontro na aldeia, às 12h do dia seguinte, pois ele havia também marcado com outros dois amigos portugueses, diante da casa dos pais de Adriano. Chegamos uma hora antes do combinado e tivemos tempo para fazer um giro a pé pela região, onde a vida rural predomina, entre o verde e o bege de um terreno árido e pedregoso, de vegetação rala entre oliveiras, hortaliças, áreas de pastoreio, indústrias e artesanatos rudimentares. Encontramos, pelas ruas de terra ou de pedra, mulas carregando produtos agrícolas, semelhantes às que eram conduzidas pelos almocreves de um passado distante, quando os vendedores ambulantes, judeus e depois marranos, vendiam queijo, sal, peixe, farinha, azeite, cereais e lã.

Os judeus e marranos dominavam o comércio local e dos arredores e, montados em mulas ou machos de carga, caminhavam pela região, transportando e fazendo comércio de peles. A indústria do curtume era realizada também por eles que, para amaciar a pele, utilizavam uma técnica rudimentar a partir do uso de excrementos de cães, que coletavam pelos caminhos. Isto gerava escárnio por parte dos cristãos, que ofendiam a honra e a dignidade dos judeus e marranos que transitavam por ali - o que fica patente no seguinte soneto popular:


Caga perro, caga cão, P'ra curtir o cordovão;


Caga cão, caga perro,
P'ra curtir o bezerro.

 

Outros judeus eram artesãos ou mercadores ambulantes de bacalhau, arroz, azeite, oferecendo de casa em casa seus artigos, ampliando significativamente o comércio da região. Aos cristãos cabia a lavoura.

Paulo conta-nos um pensamento popular sobre a riqueza dos judeus de Carção: "A um judeu nada mais faltava para fazer fortuna que uma libra e uma mula e, quando aqui nascia algum [judeu], logo nascia uma mula, tão habitual era a atividade deles como almocreves".

Já na parte baixa da aldeia, passamos pela casa da senhora Mathilde Jerónimo que estava trabalhando em um tear manual, tão antigo e vivido quanto ela. Com a pele enrugada pelos anos, talvez mais de setenta, pela aridez da terra, do frio e do sol, tecia uma colcha, segurando em uma das mãos uma lançadeira (tipo de agulha) que também é, juntamente com a menorá, ou candelabro de sete braços característico do judaísmo, um dos símbolos da recém-criada bandeira de Carção, representando a capacidade de trabalho do povo e o amor pelo artesanato. O espaço era exíguo, de paredes e piso de pedra, uma antiga estrebaria ou armazém de trigo e feno, separado por um teto de madeira da parte superior da casa nos séculos da Inquisição. A parte social e os dormitórios, principalmente no inverno, eram aquecidos pela dissipação do calor dos animais e do feno. Imaginei como aquilo se parecia à realidade da aldeia judaica de onde vieram minha mãe e avós maternos, Yedenetz, na antiga Bessarábia.

Prosseguimos andando pela parte baixa da povoação, onde os judeus se aglutinavam numa espécie de gueto depois habitado pelos marranos, termo pejorativo com que eram chamados os cristãos-novos, cujo significado é "sujos" ou "porcos". Cruzada a "rua do meio", nome da travessa que separava os judeus dos cristãos, seguimos em direção à casa que havia pertencido aos familiares de Adriano. Paulo nos explica que acima da "rua do meio" viviam os cristãos e, abaixo, os judeus ou marranos.

Em Carção ainda existem algumas casas não recobertas de argamassa, em cujas paredes de pedra podem ser percebidas depressões onde os judeus colocavam mezuzót, pequenos rolinhos manuscritos que contêm um trecho bíblico que fala sobre o Deus único. É um costume judaico tocá-los com os dedos e depois beijá-los, ao entrar e sair de casa. Foi possível ver inscrições de cruzes com uma base triangular, deixadas pelos cristãos-novos como forma de disfarce para não serem importunados pelas autoridades religiosas.

Mais adiante, chegamos ao local marcado para o encontro. Era diante de ruínas de pedra, situadas entre duas casas já reformadas. Em meio a essas ruínas, encontramos uma laje sobre uma porta, com a inscrição "1653" e, em alto-relevo, um grande Leão de Judá deitado e duas aves, provavelmente pelicanos. Junto, duas cruzes com base triangular. Andamos mais um pouco e encontramos a mãe de Paulo, dona Celene Fernandes, vestida com roupa de trabalho, que veio ver o filho e seus amigos - uma pausa na atividade de vendedora de peixes da região. Cheia de vitalidade, aspecto saudável e alegre, com cara de quem não tem medo do trabalho, conversamos como se fôssemos velhos conhecidos. Nesse momento, ouve-se uma barulheira infernal de buzina e alto-falante vindos de uma caminhonete. Era o concorrente de Celene, vindo de outro vilarejo oferecer peixe aos moradores de Carção. Ela riu, não se importando com a invasão, e com bom humor disse que cada um está lutando para sobreviver, e que há lugar para todo mundo. "Numa outra vez irei vender meu peixe na terra dele", disse. Lembrei-me de minha mãe em casa usando um avental parecido enquanto cuidava de nós e da cozinha.

Na hora e local combinados aparecem os amigos de Paulo, Maria Fernanda Guimarães e Antonio Júlio Andrade. Ambos os pesquisadores que estavam terminando de revisar o livro que seria lançado dentro de alguns dias. Seu título: Carção - a Capital do Marranismo.

Tudo aquilo me parecia surpreendente. Parecia um sonho estar naquela terra distante e ao mesmo tempo tão próxima, falando com pessoas desconhecidas, mas ao mesmo tempo familiares. Algo das transmissões transgeracionais ali estava presente, não apenas como lembranças, mas com muita emoção.

Fomos todos, em seguida, almoçar no restaurante da dona Alzira, onde saboreamos uma deliciosa bacalhoada - prato típico dos marranos de Carção. Durante o almoço, a conversa sobre judeus e marranos prosseguiu; uma das pessoas disse que por ali só há cristãos-novos e a outra, de pronto, afirmou: "Não senhor, aqui só há judeus".

Fernanda também nos contou de seus antepassados judeus, dos processos a que foram submetidos, das torturas e da garra dos judeus que lutaram para preservar sua fé às escondidas. Ela recorda o desaparecimento dos sambenitos da igreja matriz, onde ficavam expostas essas mantas colocadas pela cabeça à semelhança de um saco. O Tribunal do Santo Ofício obrigava os condenados a usarem essa veste e a desfilarem com ela pelas ruas antes de cumprirem a sentença no pelourinho ou na fogueira, quando eram desnudados. Nela era pintada a imagem da pessoa condenada, rodeada de cães, serpentes e diabos, que ficaria exposta na igreja após sua morte e queima do corpo. Sua função era a de submeter o povo e, em especial, os cristãos-novos condenados por heresias ou atitudes consideradas judaizantes, para que ninguém esquecesse o mal que eles fizeram à cristandade. Seu desaparecimento da igreja, levados supostamente pelos judeus, foi interpretado como um ato expressivo de coragem, de luta e de fé judaicas para defender-se da opressão da Igreja. Estes pesquisadores citam que "foi registrada nessa aldeia a existência de pelo menos três livros judaicos, proibidos por lei".

Esse grupo de idealistas deseja preservar e resgatar as lembranças daquilo que não está nas imagens, mas nos sentimentos, nas memórias encriptadas de um passado que não pode ser esquecido. Eles desejam erguer um memorial em homenagem àqueles que foram processados ou mortos pela Inquisição portuguesa. Pretendem construir na entrada da cidade uma grande menorá com os nomes das vítimas da intolerância da Igreja e de outros interesses, para que o tempo não apague a História. Querem resgatar as verdades, desfazer as injustiças e apagar as sombras de dor e culpa que os perseguem. São atos de reparação para poder se libertar e se religar a seus ancestrais judeus pela cultura da coexistência entre as diferenças. Durante minha rápida passagem por esse lugar da história judaica, tive vontade de participar dos anseios dessa gente, tão desconhecida e tão familiar. 

 

Leia o texto completo aqui

 

 

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