Desde sempre que a neve fez parte do cenário transmontano, mas nunca como agora causou tanto alarido. Andará o tempo “confuso” ou já nos esquecemos dos antigos nevões que isolavam a região?
O frio e a queda de neve dos últimos tempos “paralisaram” a região transmontana.
Aldeias, no concelho de Mirandela, ficaram sem electricidade devido ao peso do gelo nas linhas. Em Bragança a cidade ficou intransitável e muitas aldeias isoladas. Sucederam-se os acidentes na cidade e as várias quedas de pessoas nos passeios, devido ao gelo.
Mas nada disto é novo na região transmontana. Esta vaga de frio que atingiu a região, neste ano, não é nada que admire ou cause espanto. Em 1945, por exemplo, a cidade de Miranda do Douro atingia o mínimo histórico de 16 graus negativos, dando razão ao velho provérbio que define a região: “nove meses de Inverno e três de Inferno”.
Os extremos climáticos foram, desde sempre, característica geográfica desta região. No entanto, as alterações climáticas que se fazem sentir por todo o mundo têm levado a uma suavização destas temperaturas, de tal modo que hoje os noticiários nos entram pela casa adentro com alertas de frio e queda de neve que fazem sorrir os mais velhos.
Na Santa Casa da Misericórdia de Bragança um grupo de idosos, olhando as montanhas pintadas de branco, comentava como o Inverno era bem mais “duro” noutros tempos, tempos difíceis. Situamo-nos na década de 50. A cidade de Bragança pouco mais era que a cidadela, a rua Direita e a sua paralela, a praça da Sé e o largo dos correios. Quem vivia nas aldeias tinha que vir à cidade a pé ou de burro, o transporte mais usado nesta época.
Uma consulta aos arquivos do jornal Mensageiro, que então tinha dez anos, não dá quaisquer resultados para notícias relacionadas com a queda de neve e o mau tempo. Isso não era notícia nenhuma. Era o habitual.
"Quando a neve caía era para ficar. Nevava dias a fio"
“Quando a neve caía era para ficar. Nevava dias a fio”. Albino Carneiro, com 84 anos, era sapateiro de profissão e recorda-se de, nos seus tempos de juventude, ter chegado a medir a neve: “uma altura recordo-me que a neve acumulada tinha 80 centímetros de altura”.
As temperaturas baixas provocavam a formação de fusos de gelo nas casas. As crianças de então, homens e mulheres de hoje, chupavam aquele gelo como se de um rebuçado se tratasse. Disso mesmo se recorda Maria Aniceta, hoje com 89 anos. De uma vida de privações e de trabalho recorda os dias frios em que ia lavar roupa ao rio Fervença e tinha de partir o gelo com as mãos.
“Eram tempos bem duros. O rio gelava, mas eu tinha de trabalhar e era obrigada a partir o gelo com as próprias mãos”, contou. Com sete filhos para criar, viúva desde os 39 anos, Maria Aniceta diz que naqueles tempos apenas esperava ansiosamente pelo Natal. “Só esperava
que viesse o Natal porque depois os dias iam crescendo e não custava tanto”.
Ao contrário dos dias que correm, as pessoas preparavam antecipadamente o Inverno. Maria Joana Galhardos, de 88 anos, lembrou que, nesses tempos, as pessoas secavam as casulas, o grão-de-bico e o feijão frade a pensar no tempo frio. Apanhavam-se ainda as batatas, no final do Verão, depois as castanhas e as nozes, mais tarde. Os que viviam nas zonas rurais tinham ainda animais: vacas, porcos, cordeiros e galinhas.
Mas isso obrigava a encontrar “soluções” contra o frio. Passavam-se meses sem se ver um palmo de terra e os animais tinham de comer. Antecipando-se ao tempo, os que criavam cordeiros, por exemplo, colhiam no Verão as folhas do Freixo que servia depois para a alimentação no Inverno. Quando o frio se arrastava, as pessoas tinham de partir com o gado à procura de aldeias mais amenas.
Ainda assim, Maria Joana garante que não se passava fome, “as pessoas plantavam a terra”. Um cenário certamente bem diferente do de hoje em que ao despovoamento humano se junta o abandono das terras.
"A maioria das casas não tinha forro nos telhados
e não era raro as pessoas acordarem com neve na cama."
Mas, se fome não passavam, já frio.... Como nos dias de hoje, o distrito encontrava-se ainda mais isolado. As pessoas que ainda insistiam em ficar, ao contrário das muitas que então partiam a salto, sobretudo para a França, fome não passavam, comiam “caldo e castanhas”, mas tinham uma “vida escrava”.
A maioria das casas não tinha forro nos telhados e não era raro as pessoas acordarem com neve na cama. Chamavam-lhe a “neve furaqueira” por vir puxada à vento e se enfiar pelas casas adentro, que não tinham aquecimento. Aliás, falamos de um tempo em que a maioria das aldeias não tinha sequer electricidade e só as estradas mais movimentadas do distrito estavam alcatroadas. Falamos de um tempo em que para ir de Bragança a Miranda do Douro, por exemplo, se demorava dois dias na “carreira” ou 24 horas de comboio.
Mas falamos também de um tempo em que as escolas das aldeias estavam cheias, embora sem aquecimento. As crianças de então iam pela aldeia pedir brasas para colocar na braseira, que ficava aos pés da professora.
"há quem se recorde do gelo das estradas ser partido
à força da picareta"
A neve era retirada dos caminhos pelas pessoas. Cada uma retirava a neve que se acumulava à porta de casa e há quem se recorde do gelo das estradas ser partido à força da picareta.
A diferença para os dias de hoje é tanto que os mais velhos insistem que as nevadas que caíram recentemente foram “brincadeiras” ao pé dos nevões de outros tempos e, embora muitos deles não tenham tido sequer a oportunidade de estudar, sabem que o tempo já não é o mesmo e apontam o dedo ao aquecimento global. Mas será mesmo essa a razão para o tempo meteorológico nos “espantar” e apanhar de surpresa?
O investigador João Corte-Real está hoje em Bragança, na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico, para falar do assunto.
Fonte: Mensageiro