Não é mendigo, nem caixeiro-viajante, nem traficante de droga. É jornalista. Já esteve em sítios onde muitos de nós nunca haveremos de ir. Agora, como muita gente já sabe, anda por aqui fazendo reportagens que publica na Internet, “sem recibo”
Para Nuno Ferreira andar por aqui, fazer reportagens no país que percorre com as solas dos sapatos desde há dois anos, é igual a fazer outras reportagens que estão inscritas na sua carreira como a “Route 66 a Estrada da América” ou “A Índia de Comboio”, pelas quais ganhou prémios e que, para certa geração de outros jornalistas, foram “marcantes”.
“Uma reportagem é uma reportagem, seja sobre o que for”, afirma. Preferia não falar desse sentimento tão nacional que encontra nas redacções um solo fértil, mas como fazemos a pergunta vai dizendo que, nessa altura, em que fazia essas reportagens, sofreu de “inveja”. “Já lá havia aquela categoria do grande repórter. As pessoas não se interessavam em me perguntar como tinha sido a minha viagem. Só queriam saber se já era grande repórter ou se não era”, conta-nos.
Entretanto, e apesar dos prémios de jornalismo que recebeu, nunca foi promovido e por vezes sujeitava-se a ganhar menos para poder fazer o que gosta: reportagens. Chamavam-lhe “príncipe da grande reportagem”, ou “caixeiro viajante”. Era “na brincadeira”, mas acabou por pagar o preço das piadas. Como forma de resposta, chegou a ter um cartão na secretária a dizer: “fazem-se pequenas, grande e médias reportagens”.
Quando propôs ao Expresso, há dois anos, fazer crónicas a partir do seu percurso por Portugal a pé foi também porque nessa altura estavam muitos outros jornalista a propor reportagens em destinos distantes e a esquecerem-se da existência de um Portugal que só aparece nas notícias quando há incêndios ou outras catástrofes.
No início, as crónicas foram publicadas na Revista Única do Expresso. Depois, a Revista foi reformulada e ficou sem as crónicas. Actualmente mantém um blog na Internet (http://portugalape.blogspot.com), sem qualquer patrocínio.
O facto de ter deixado de ter quem lhe pague as reportagens não foi motivo para desistir da viagem. Mesmo com interrupções decidiu continuar. Já tinha feito parte do caminho e reunido muito material que, no final, pensa publicar em livro.
Faz todo o percurso a pé. Estabelece um poiso temporário em determinados locais e depois desloca-se de táxi para o ponto onde interrompeu a caminhada. Quando termina a jornada volta a chamar o táxi, do local até onde andou. Isso encarece bastante a viagem.
“Não é fácil ser freelancer em Portugal”, confessa. “Neste momento não tenho apoio, mas considero-me jornalista na mesma, é aquilo que eu sei fazer. É como outra profissão qualquer, um carpinteiro não sabe fazer outra coisa”, explica, sublinhando que os jornalistas têm que ser “resistentes e persistentes”.
Começou a sua actividade jornalística no final da década de 80. Na altura, quando nasceu O Independente e O Público, “havia dinheiro e tive a sorte”. Agora não há. “Quando saí do jornal diário (O Público), já não havia dinheiro para ir a lado nenhum e não havendo dinheiro a qualidade do jornalismo perde-se”, afirma.
Nesse jornal conheceu jovens repórteres com qualidade, que trabalhavam três meses de graça, “como cães”, e depois iam embora. “Se calhar hoje eram excelentes jornalistas e tiveram que desistir. Alguns estão a trabalhar em call centers”.
Para um jornalista que anda de mochila às costas, sem uma grande máquina fotográfica a parecer câmara de filmar, nem um carro com letras, nem sempre a recepção é a melhor. A princípio as pessoas desconfiam, algumas nunca chegam a acreditar que é jornalista e já se confrontou com episódios caricatos como perguntarem-lhe se o que levava na mochila era droga. Mas, nesta longa travessia, também já fez amigos, pelo menos temporários, que lhe dão indicações sobre os melhores percursos ou, depois de acreditarem que é jornalista, lhe dão alguma matéria-prima para escrever.
Portugal “assombrado”
Anda ao sol, há chuva e ao vento. Tem visto a beleza do território português, mas também a tristeza de um caminho que segue rumo à falta de vida humana; tem percorrido Portugal a pé, sobretudo pelo interior. Partiu de Sagres, terra de onde se sente o apelo do “novo mundo”, e chegou a Trás-os-Montes em Janeiro passado. Resolveu fazer o caminho ao contrário. Desta vez não procurou o além mar, mas tudo aquilo que acabou por ficar para trás, o tal conceito, que trazia “na mochila” de muitos anos de jornalismo em jornais nacionais, como o de “Portugal profundo”; um país que não fica algures no fundo do Atlântico, fica aqui, soterrado no pedaço do rectângulo que confronta com Espanha.
Nestas terras sente a tristeza do abandono, a assombração da morte das actividades humanas, a falta de gente (aquilo, a que se chama “desertificação”). “Fico triste de saber que muita gente está para fora. Fico triste quando caminho, e é um prazer caminhar em paisagens tão bonitas, e de repente chegar a uma terra, a povoações com grande potencial turístico, como Outeiro, e não encontrar quase ninguém”.
Em Guadramil (“atormentou-me o silêncio daquelas ruelas”, escreveu Nuno no blog) foi pior, passou e só viu três sinais de vida, além das chaminés a fumegar: um homem a perguntar-lhe se queria boleia de tractor, uma velhinha a guardar galinhas e uma carrinha dos CTT.
Nuno ferreira defende outra coisa, outro modelo de desenvolvimento para o país, uma alternativa à concentração urbana, qualquer coisa que reerga a casas caídas e as encha de vida e de gente. “A agricultura morreu, tem que haver uma alternativa e não é a urbana. Ando a atravessar um país vazio. Não devia ser, mas é”, diz.
Certas zonas estão piores que outras e a falta de pessoas não a sentiu apenas em Trás-os-Montes. “Há zonas que dentro de 15, 20 anos não vão ter ninguém”, sublinha. É que este modelo de desenvolvimento favorece apenas alguns e, se não há dinheiro para apostar em outro, que poderia passar pelo turismo rural, é “porque as pessoas não estão interessadas que haja. O país está dominado por um lobby em que o campo não interessa para nada, o que interessa é a construção”. Ou seja, se for preciso fazer um Campeonato do Mundo, ou outro Campeonato da Europa de futebol, “vai aparecer dinheiro, para mais redes viárias e mais coisas. Para o campo não há dinheiro, nem para o turismo rural. Em Portugal é assim”. Para Nuno Ferreira, que fez a linha do Tua a pé, também não são as barragens, mesmo que tenham componente de rega, que vão contribuir para combater “o deserto”, o tal deserto humano, o Portugal mal assombrado.
Pequena biografia
Segundo a informação que disponibiliza no blog, Nuno Ferreira é natural de Aveiro, onde nasceu em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público, onde se manteve até Setembro de 2006. Nos últimos 20 anos fez todo o tipo de reportagens de cariz social, primeiro na revista do Expresso e mais tarde em diversas secções do Público (Sociedade, Local e Pública). Neste último, manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Entre outros prémios, recebeu em 96 o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho “Route 66 a Estrada da América”, que lhe valeu também uma menção honrosa da Fundação Luso-Americana. Um ano mais tarde, recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho “A Índia de Comboio”. Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro "Ao Volante do Poder" na editora Bertrand. Publicou crónicas do "Portugal A Pé" na Revista "Única" do "Expresso" entre Fevereiro e Setembro de 2008.
Fonte: Mensageiro Notícias/Ana Preto
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