As gentes de Carção, em Bragança, saem à rua madrugada fora em cada Quaresma a encomendar as almas, num costume que ninguém sabe como começou nem se questiona porque de ano para ano se repete religiosamente. O ritual está associado à época sagrada da morte de Cristo, mas são as pessoas do povo que intercedem directamente a Deus pelos seus que já partiram e por todas as almas que ainda não encontraram o caminho do Céu. Um ritual à revelia da Igreja e dos sacerdotes que se vai perdendo nas aldeias transmontanas mas que em Carção se repete graças à persistência dos antigos e ao incentivo da jovem associação judia Almocreve que se dedica à recolha das tradições locais. Nesta aldeia do concelho de Vimioso, às quartas e sábado, durante a Quaresma, um grupo de homens e mulheres iniciam, à meia noite, um percurso de duas horas por doze encruzilhadas da aldeia. Em cada uma cantam pelas almas do Purgatório e por aqueles que já partiram e convidam a rezar pela mesma causa quem os ouve em casa. Ao contrário de antigamente, a luz já ilumina as ruas e fez esmorecer o ambiente tenebroso que envolvia esta tradição em que ao som dos cânticos se acendiam candeias de azeite por detrás das janelas. Hoje em dia, vai aparecendo uma ou outra vela, mas já nem os xailes negros sobre as cabeças das mulheres conseguem manter o “segredo” de quem outrora encomendava as almas. Os homens abandonaram as capas de pardo com que se cobriam e são eles que fazem temer a perda da tradição, como diz à Lusa Luísa Afonso.
Tradições ancestrais
“As mulheres ainda se juntam, o que vai faltando são homens, e são precisas as vozes deles”, lamenta aquela a quem cabe no ritual “deitar o cimo”. É a voz de Luísa que sobressai nos cânticos quando é preciso puxar, enquanto as outras, “as contras”, baixam o tom. Desde pequenina que Luísa ia com a mãe encomendar as almas e quando não iam acompanhavam religiosamente a passagem do grupo, fazendo parar o tear enquanto se ouvissem as preces. “Isto já é tão antigo que talvez já nem os nosso avós se lembrem da origem”, responde Teresa Quina que não sabe quando começou nem o porquê desta tradição, uma questão que não preocupa quem a pratica. O importante “é a devoção”, garante Alcina Borges, de 77 anos, que este ano decidiu ser ela a mandar encomendar as almas para cumprir uma vontade que o marido não alcançou antes de morrer. Antes do ritual, a casa de Alcina enche-se de gente numa ceia à base de iguarias da terra que prepara os encomendadores para a caminhada que se segue. “Começa sempre à meia noite, nunca procurei à minha mãe porque era isto” observa Luísa. Paulo Lopes da associação Almocreve só tem uma certeza da recolha que têm feito sobre esta tradição: “é realmente muito antiga, tem séculos”. São tradições como esta que ainda vão prendendo à terra alguns filhos emigrantes que fazem questão de passar férias nestas ocasiões na aldeia. E embora implique algum sacrifício para quem já tem alguma idade, Gualter Prada faz questão de participar no ritual para que não faltem homens, mas sobretudo para que “não se percam as tradições”.
Fonte: Mundo Português