José Rentes de Carvalho, português de Trás-os-Montes a viver na Holanda desde os anos 50, esqueceu os canais, as túlipas, as pontes e os moinhos de vento, e arriscou esmiuçar o carácter dos holandeses. "Com os Holandeses" é o livro improvável com um resultado ainda mais improvável: uma sátira agridoce sobre um povo demasiado arrumado, bruto, obediente e desapaixonado, que é um best-seller naquele país, desde que foi publicado em 1972. Na Holanda já vai na 13ª edição, a Portugal só chegou este ano. Durante a entrevista, em Lisboa, o português que já foi citado pelo primeiro-ministro holandês, responde com risos, piadas e anedotas. E usa o comportamento dos holandeses para satirizar o dos portugueses. "Se os holandeses soubessem quanto tempo perdemos ao almoço ficariam chocadíssimos."
"Com os Holandeses" foi citado pelo primeiro-ministro holandês Jan Peter Balkenende num discurso ao comissário europeu Durão Barroso. Conseguiu convencer o primeiro-ministro a concordar consigo?
Quando é preciso uma referência simpática contra os holandeses pega-se no livro e está lá tudo. Entre os muitos defeitos dos holandeses, eles têm uma qualidade de fazer inveja: aceitam as críticas e têm capacidade para se rir de si próprios.
É isso que explica que seja best-seller na Holanda, apesar de ser um livro crítico dos holandeses?
Os holandeses têm uma atitude diferente em relação à crítica. Quando são criticados, não vão insultar o crítico, mas antes ler e pensar: porque é que este sujeito diz isto de nós? Não o vêem com maldade, antes como um contributo para tornar a imagem do cidadão ou do país mais nítida ou descobrirem outro ponto de vista que não conhecem. É uma marca de civilização.
Já esperava isso antes de escrever o livro?
Não. O livro foi escrito no seguimento de uma conversa de café, com um editor holandês. Nesse dia estava extremamente maldisposto, dizia que os holandeses eram racistas, chatos, desapaixonados. Ele sugeriu: "Por que não escreves sobre isso?" Estava na Holanda há 14 anos e respondi-lhe que não, que isso era impensável. Despedimo-nos e dias depois tinha um envelope da editora com um cheque e uma carta a dizer: "Este é o adiantamento dos direitos de autor do livro que vais escrever."
Os holandeses costumam falar consigo sobre o livro?
Tenho duas caixas cheias de correspondência de leitores. Até hoje, só tive uma reacção negativa. E nem foi de um holandês, foi de uma grega, que escreveu num jornal: "Se não gosta de viver neste país, vá-se embora."
Escreveu que os holandeses são "indivíduos cujo temperamento não se coaduna às fantasias, às perdas de tempo, aos descuidos, menos ainda à indolência, fanáticos do planeamento, da previsão e do arrumo." Afinal, como são os holandeses?
Grandes, loiros, reservados, correctos, um bocadinho forretas [risos], muito organizados, demasiado obedientes, extremamente sensíveis ao controle social.
Há alguma lição que deveríamos aprender com eles?
Se os holandeses soubessem quanto tempo perdemos ao almoço ficariam chocadíssimos. [risos] O almoço lá são duas sandes de queijo e uma chávena de café. Também, pudera, a gastronomia deles é péssima. Por outro lado, lá sinto dificuldade em exprimir a minha capacidade de preguiça. Aqui preguiço com uma grande variedade de argumentos: a ligação à internet é fraca, hoje está muito calor ou muito frio. Lá não posso usar essas desculpas, sinto-me obrigado a mostrar trabalho.
E o sentido de organização deles, faz-nos falta?
Essa necessidade de organização é ditada pela grande quantidade de pessoas num espaço restrito. Tem um preço: o contacto é muito frio. Enquanto nós não temos organização nenhuma, mas damos todos abraços. Sou amigo dos meus vizinhos, já os conheço há 23 anos e eles até têm as chaves da minha casa. Mas se saio e a vizinha está a limpar os vidros, ela não olha para mim nem diz bom dia. Em parte é frieza e reserva, outra parte é para não incomodar. É uma atitude ambígua.
Qual o maior choque que sentiu quando pisou a Holanda?
A frieza das pessoas. Por outro lado, eu vinha de um país católico e refreado. Quando cheguei a Amesterdão nos anos 50, a liberdade entre homens e mulheres já era tão grande que foi uma festa. Para quem ia daqui, onde apertar a mão era pecado...
Sentiu-se discriminado quando chegou? Diz que eles são racistas e xenófobos.
No início não. Como era diplomata e tinha um carro com chofer, os holandeses olhavam-me com um certo respeito. Quando virei pobre, senti a diferença: passei a ser um estrangeiro. Quando comecei a aparecer muito nos jornais, a atitude mudou outra vez. E agora faço parte do mobiliário.
Entrevista do "GRANDE" Rentes de Carvalho ao Jornal I