O Natal é a "Festa dos Rapazes" no Nordeste Transmontano com o colorido e as brincadeiras dos "caretos" envolvendo toda a comunidade numa celebração ancestral em que convivem o sagrado e o profano. Já lhe chamaram em livro "O Inverno Mágico" protagonizado por diabólicas figuras escondidas atrás das máscaras, sem as quais não há Natal em aldeias como Varge, no distrito de Bragança (norte de Portugal).
Depois da noite passada em família, os rapazes mascarados tomam conta da aldeia durante dois dias, em 25 e 26 de Dezembro. Aos 82 anos, António Alberto Vaz já não consegue acompanhar os rapazes nas 'aventuras', mas ainda tem presente a magia destes rituais, que conseguem trazer para a rua no pico do gelado inverno toda a comunidade e cada vez mais forasteiros. António continua fabricando as máscaras que outrora usou e que continuam a ser o principal adereço dos rapazes disfarçados ainda por baixo de fardas fatos feitas de cobertas estragadas ou de sacos de lona e enfeitados com farrapos.
Fazem-se acompanhar de utensílios agrícolas e à cinta carregam ruidosos cintos de chocalhos que tem como alvo predileto as garotas.
Durante muito tempo elas tiveram apenas direito às chocalhadas nesta festa onde começaram mais tarde a ser convidadas para comer e dançar.
António Torrão foi durante muitos dos seus 70 anos o cozinheiro da festa, era ele que confeccionava a vitela e o bacalhau com que os rapazes confortam o estômago entre as muitas brincadeiras.
A tradição está diferente, diz, agora pagam a um cozinheiro para fazer o trabalho e o dinheiro compra tudo que antigamente era feito exclusiva
mente pelos rapazes. Desde a busca da lenha no monte, que era transportada num carro de bois, para fazer arder a fogueira em trono da qual se reúne o povo. Eram também eles que ajustavam e preparavam a vitela e à mesa tinham lugar conforme o estatuto.
"Iam subindo de galão de ano para ano", contou à Lusa José Luís, lembrando um dos conceitos desta festa dos rapazes que marca a passagem dos jovens garotos para a idade adulta. O evento começa depois da missa de Natal com as comédias ou "loas" em que os "caretos" relembram o quotidiano da aldeia, denunciado deslizes dos conterrâneos. A crítica social é enfatizada com encenações em que os rapazes "vestem" a pele dos protagonistas, seja mulher, velho ou mesmo animal, e faz o delírio da assistência, que aplaude e ri, mesmo com o ressentimento dos visados, porque aqui impera a velha máxima: "ridendo castigat mores" (a rir se castiga os costumes). Segue-se a rodada de Boas-Festas ao som da gaita-de-foles, dos gritos e da chocalhada dos "caretos", depois da qual resta uma vara (pau) com vários ramos carregada de fumeiro, pão, frutos secos e outros produtos da terra. Esta recolha é a contribuição para a ceia dos rapazes ou arrematada para angariar dinheiro para pagar a festa. Mas também os rapazes não se livram de rigorosas punições, caso não cumpram
o que manda a tradição e a mais penosa é para aqueles que não comparecem. Os que não aparecerem na segunda rodada são retirados da cama para a rua e atirados ao rio ou obrigados a dar umas voltas pela geada, descalços e despidos, não se vislumbrando pior castigo, no rigoroso inverno transmontano. Os mais velhos dizem que os rapazes de agora são menos disciplinados, talvez também porque são em menor número que antigamente, mas todos concordam que o importante é manter a tradição e, para que assim seja, até aceitam alguns desvios ao rigor de outros tempos.
Fonte: Lusa