O Supremo Tribunal de Justiça decidiu suspender a pena de cinco anos de prisão a que fora condenado um militar na reserva, por abuso sexual de uma menina de 12 anos, em Bragança. Considerou o Supremo Tribunal que, desde que pague 10 mil euros à criança no prazo de três meses, "a título de reparação do mal do crime", o abusador pode ficar à solta - apenas terá de prestar 200 horas de trabalho a favor da comunidade. Esta notícia, publicada num canto da última página do "Diário de Notícias" a 3 de Outubro, não parece ter causado qualquer estremecimento público. Há cinco anos, um movimento, as "Mães de Bragança", pôs o mundo em polvorosa - fez até a capa da "Time" -, por mor de umas cidadãs brasileiras que por lá andariam a desencaminhar do remanso dos lares e dos seios das legítimas esposas os maridos das ditas "Mães". Nunca percebi porque se definiriam estas mulheres como "Mães" dos homens com quem tinham casado e até cheguei a pensar que talvez fosse esta confusão de títulos a razão última da fuga dos cavalheiros para o colo das brasileiras, que não reclamavam sobre eles direitos de maternidade. Mas estranho que tão extremosas "Mães" não tenham nada a dizer sobre esta decisão legal que redime com uma mão-cheia de patacos esse crime gravíssimo que é o abuso sexual de menores. Estranho que o novo Código de Processo Penal, que permite a suspensão das penas até cinco anos, não tenha ainda provocado um movimento de revolta nacional.
As vítimas habituam-se à sua condição e acatam. Com sorte, este pedófilo pode até cumprir as tais horas de serviço comunitário numa escola. A Convenção Europeia Contra os Abusos Sexuais, assinada por Portugal a 25 de Outubro de 2007 - há um ano, portanto -, exige que "os Estados garantam que os candidatos a profissões que envolvam o contacto regular com crianças não foram condenados por crimes de abuso ou exploração sexual de crianças". O ministro da Justiça manifestou a intenção de propor ao Parlamento a aprovação desta lei, mas, volvido um ano, está tudo na mesma - o Ministério da Justiça garante que o projecto se mantém, mas não adianta datas. A segurança das crianças não parece ser assunto prioritário - pelo contrário: este novo Código de Processo Penal protege escandalosamente os praticantes de crimes, vulnerabiliza as vítimas e apela à inoperância das polícias. Para quê prender pedófilos (ou assaltantes, ou até homicidas) se a Justiça os solta imediatamente? Entre uma e outra "apresentação às autoridades", os agressores podem voltar a atacar - e muitas vezes o fazem. Ou vingar-se das vítimas. No caso específico desse crime hediondo que é a pedofilia, a reincidência é, como está mais que provado, altíssima. Ao permitir a suspensão da pena neste tipo de crimes, o Estado está a apelar directamente ao silêncio das vítimas - e a associação com a tentativa de dissolução do processo Casa Pia torna-se muito evidente. Aliás, já nem se ouve falar desse processo. O que se apurou? Quem cometeu o quê, afinal?
Há uma relação evidente entre o novo Código de Processo Penal, o aumento da criminalidade e a brandura dos juízes. Por enquanto, as forças policiais apenas se queixam de mansinho. Talvez um dia cheguem à revolta, como aconteceu na semana passada em Paris, onde a polícia de um bairro suburbano apresentou publicamente uma lista de 50 casos de grande violência em que os agressores, depois de entregues à Justiça, foram automaticamente postos em liberdade. Enquanto o procurador da República de Paris anuncia a criação de um "grupo local de tratamento da delinquência" no bairro em questão para analisar as "causas" da violência, a polícia brada contra o "laxismo judiciário" face às consequências.
Enquanto a polícia protestar, os cidadãos terão razão para sentir alguma segurança. Mas, a continuarmos nesta senda europeia de tolerância lenta, mansa, cheia de intenções paternais e caridosas a favor dos agressores - eles merecem uma segunda oportunidade, eles têm uma história que os desculpa, eles não têm culpa de não serem bons como nós -, acabaremos num caos de violência surda, inconfessada. Ao esvaziamento das prisões corresponderá, cada vez mais, o silêncio das vítimas. E, a pouco e pouco, a desistência das polícias. Regressaremos aos ilusórios tempos de paz das ditaduras - no nosso salazarismo, se se recordam (parece que a memória anda fraca), a violência era pura e simplesmente censurada: os mortos das intempéries, as crianças violadas, os presos torturados, nada disso existia, porque era proibido noticiá-lo.
Do mesmo modo, esta menina de 12 anos, violada em Bragança, afinal nunca foi violada. Como viverá ela com esta violência ilibada e com a perspectiva de se cruzar, a qualquer momento, com o homem que a agrediu, mal posso imaginar. Mas sei que este pavor não se resolve com 10 mil euros - ao proceder assim, a Justiça portuguesa trata uma criança violada como uma prostituta regiamente paga.
Inês Pedrosa, Expresso