Nasci em 1982 em Bragança. Como grande parte das pessoas desta cidade, os meus pais tinham aldeia, o que significava que tinham nascido noutro local aonde íamos ao fim-de-semana. A aldeia era o local onde não havia nada quando comparado com a cidade. A aldeia era onde íamos buscar os legumes, a fruta, almoçar com os avós. Era onde eu podia ter cães e gatos, brincar na terra, correr o dia todo até que o sino tocasse as “Trindades”.
As casas da aldeia eram rústicas e mais frias. Gostava mais do apartamento na cidade, apesar de emparedado entre prédios.
A aldeia, a sete quilómetros da cidade era o seu oposto. Aqui podia ouvir o silêncio, algo que é impossível de explicar. Ouvia o som das árvores, dos pássaros, dos animais, ouvia o som proveniente dos postes eléctricos e isso fascinava-me.
Ao longe via as luzes cintilantes da cidade e Bragança parecia enorme.
Até aos 17 anos vivi em Bragança. Conhecia apenas meia dúzia de aldeias, vilas e cidades próximas. Espanha era o exemplo de desenvolvimento. Cada vez que íamos a Zamora ou a Salamanca era inevitável comparar como se estas duas cidades tão próximas eram tão mais desenvolvidas.
Nas férias do verão elegíamos a Puebla de Sanábria a Montesinho, ao Douro Internacional, a Soeira ou a qualquer outro local do maravilhoso Nordeste Transmontano. A sensação era que aqui não se passava nada e fora daqui ainda pior. As estradas que ligavam à Puebla eram más, como hoje em dia. Nada mudou. Mas ainda assim eram preferíveis a outras que ligavam Bragança ao resto do distrito.
Quando íamos até Lisboa, a casa de uns familiares, tinha vontade de ali ficar porque “eles tinham tudo”. Via na televisão as imagens das outras cidades e questionava-me porque é que Bragança não tinha nada, ainda longe de imaginar que o resto do distrito estava bem pior.
Aos 17 anos, a fazer 18, entrei na faculdade, no Porto. Foi aqui que eu senti o peso da interioridade. A maioria dos colegas era proveniente do Porto, Grande Porto e Minho. Do Nordeste Transmontano éramos três, curiosamente os que tinham entrado com notas mais altas.
Cheguei a ouvir comentários de outros colegas que diziam que as nossas notas não significavam nada porque éramos provenientes do interior e a exigência era diferente.
A verdade é que eu não sabia andar numa grande cidade. Nunca tinha andado de metro, comboio ou autocarro. Conhecia apenas o Museu Abade Baçal, o que então existia na cidade. Procurava ler muito, mas não tinha aconselhamento de ninguém. Lia os autores que eram obrigatórios, lia tudo o que apanhava, lia os jornais, mas havia realidades que ficavam longe do meu alcance.
Nunca tinha frequentado campos de férias, workshops nem ateliers de nada, como os colegas. Não tinha computador, nem acesso à internet, nunca tive uma playstation nem nenhum videojogo, não tinha nada do que eles tinham mas sabia coisas que eles desconheciam. As minhas vivências eram completamente opostas, mas também inesperadas.
Aos 17 anos eu sabia o que era sair à noite porque em Bragança toda a gente saía à noite. Já tinha fumado, já tinha experimentado charros, já tinha bebido, já tinha feito muita coisa não permitida para a idade. Bragança era aliás conhecida pela noite e pelas drogas, uma realidade pouco apropriada às mentes conservadoras que ainda dominam, mas que continua a persistir.
A proximidade com Espanha sempre fez desta cidade um ponto de passagem. A interioridade permite a ilegalidade também…
Vivi quase cinco anos no Porto. O que sentia e sinto continua a ser ambíguo. Não tenho aqui nada do que tive no Porto. Mas no Porto faltava-me o que o Nordeste Transmontano tem, o silêncio.
Só a partir de 2004 comecei a conhecer esta região. Carrazeda de Ansiães, Torre de Moncorvo, Vila Flor, Freixo de Espada à Cinta, Vinhais, Alfândega da Fé,Mogadouro, Vimioso e Miranda do Douro são, a par com Bragança, verdadeiros paraísos a descobrir.
O problema é que para conhecer cada um destes concelhos é necessário muito tempo e paciência. As estradas estão completamente abandonadas e degradadas, a sinalização é praticamente inexistente e há nas pessoas um sentimento de impotência que só nos leva a suspirar. Em Bragança temos o Parque Natural de Montesinho praticamente abandonado e os sinais do Governo não são positivos: desde o ano passado que este parque, a par do Parque Natural do Douro Internacional, estão sob alçada do Parque Nacional do Gerês, cuja sede é em Braga.
Todas as pessoas aqui residentes conhecem Montesinho, mas o que fazer ou ver em Montesinho. Quem ali for ficará extasiado com a paisagem, mas nada mais. Ali não há nada para ver ou fazer.
No entanto, o poder local quer ali fazer algo. Mais uma barragem, a barragem das Veiguinhas. O que é transmitido na comunicação social local é que esta é uma barragem “fundamental” para acabar com o problema de falta de água na cidade… Não vou comentar….
O Parque estende-se até Vinhais. Aqui há que dizer que a câmara tomou uma iniciativa que pode vir a dar bons frutos, criou ali o Parque Biológico de Vinhais. Situado no Viveiro Florestal de Prada, incluído no Perímetro Florestal da Serra da Coroa, em pleno Parque Natural de Montesinho, o Parque Biológico de Vinhais (PBV) foi inaugurado no passado dia 16 de Maio deste ano. Duvido que sejam muitos os portugueses que saibam que podem ali conhecer alguma da fauna e flora característica da região. Em Macedo de Cavaleiros existe a intenção de criar rotas geológicas que dêem a conhecer ao mundo que foi ali que o super-continente Gondwana chocou com o super continente Laúrissia e com o oceano Rheic, o pai do oceano Atlântico, originando uma nova formação e disposição dos continentes. Em Carrazeda de Ansiães, Vila Flor e Torre de Moncorvo temos vinhedos que produzem dos melhores vinhos da região demarcada do Douro. Em Freixo a câmara investiu na zona da Congida, junto ao rio Douro, e criou ali um “aldeamento” simplesmente espectacular.
Vimioso quer agora criar um Parque Ibérico para potenciar, a nível turístico, a zona do Angueira.
Miranda do Douro é outra das belas cidades do interior. Assim como Mirandela.
A culpa das populações
Depois de quase quatro anos aqui a viver e a palmilhar a região, a conclusão pessoal a que chego é que se temos uma das regiões mais despovoadas e desertificadas do país não é só por culpa do Governo central. A culpa é também do poder local e consequentemente de quem aqui vive.
Metidas em si mesmas, as pessoas criaram a ilusão de que no litoral é que é e lutam pelo desenvolvimento na sua pior forma. Reclamam pela construção de barragens, de parques eólicos em paisagens protegidas, reclamam pela construção de uma auto-estrada, pela dotação de mais serviços, querem aqui indústria para criar emprego. Duvido é que também queiram todas as consequências que esse desenvolvimento pode acarretar.
Demasiado concentradas a comparar a região ao litoral, não lutam pela melhoria das estradas nacionais, fundamentais para ligar o distrito entre si. Clamam por coesão nacional quando não há coesão regional.
Olham mais para a sua “capelinha”, para o seu “rincão”, do que para toda a região.
A meu ver, só o turismo pode salvar a região de uma morte lenta. Só o turismo pode atrair aqui mais gente. Mas para isso é fundamental criar actividades que dinamizem o território que temos (e não reclamar pela destruição desse mesmo património), é fundamental que as pessoas consigam cá chegar em estradas decentes, é fundamental que sejam atendidas por pessoas formadas, é fundamental que tenham aonde ficar.
Ao longo dos anos tivemos vários apoios europeus, meteram-se milhares de projectos. Houve ruas que foram embelezadas. Bragança ganhou o Polis. Macedo requalificou-se, Mirandela é o “oásis do Nordeste”, mas e os restantes concelhos?
Não precisamos de inúmeras ligações em auto-estrada. Já vimos que isso não desenvolveu o Alentejo. Não precisamos de indústria para criar emprego, temos a alternativa: turismo ambiental.
Não precisamos de mais barragens nem queremos parques eólicos a manchar as nossas áreas protegidas. Precisamos de preservar aquilo que temos, não só a nível ambiental, mas também a nível histórico. Temos inúmeros castelos e fortalezas, símbolos históricos de outros tempos, temos a “cidade ideal” em Picote, temos a Domus Municipalis em Bragança e tanto património que desconhecemos. A luta tem que ser pela preservação. O Estado e os seus institutos de protecção, como o extinto IPPAR, ou ICN, têm que ser chamados à razão.
Temos paisagem, cultura, tradição, história. Só queremos o que já temos, que é muito e incomparável.
Mas será mesmo isso que todos queremos ou serei eu uma voz solitária no meio destes montes isolados?