Dia-a-dia de um distrito rural, doze concelhos e meia dúzia de pequenas cidades encravadas nas montanhas mais a norte de Portugal
27 de Maio de 2010

José Augusto Santos podia ser o “homem dos sete ofícios”. Desde que se levanta, de manhã, até ao final do dia, não pára a não ser para comer. Com 83 anos, nada se lhe mete pela frente, haja “saúde” e “força de vontade”. Um exemplo de jovialidade para quem o rodeia, mas não para José, a quem o trabalho não o poupou e a quem, hoje, o tempo livre “é de sobra”.

Depois de 12 anos à frente da Junta de Freguesia de Rebordãos, a última actividade profissional que desempenhou, José decidiu dedicar-se ao artesanato, à escrita, à agricultura, às caminhadas, ao convívio com os amigos, à vida.

Num pequeno atelier, ao lado da casa que ele próprio construiu, dá largas à imaginação com a madeira. O próprio torno que usa foi “inventado” por ele próprio: leva o motor de uma máquina de lavar inutilizada e, a poli, que liga a correia à madeira, é o cubo de uma motorizada que também estava no lixo. José garante que “funciona bem” e é ali que vai criando os antigos moinhos da sua infância, os tradicionais carros de bois, as pequenas casas da Sagrada Família.

Tudo o que faz é apenas para oferecer aos muitos amigos que fez, e continua a fazer. Nesse mesmo atelier, José ainda guarda a documentação dos tempos em que esteve na Junta de Freguesia. Homem simples e de fé, foi com surpresa que se viu, em 1982, a encabeçar uma candidatura. Tinha regressado de Moçambique, onde viveu quase 20 anos com a mulher e os três filhos. De volta à terra natal, construiu a sua própria casa, tendo também sido da autoria dele a planta. Os vizinhos e familiares contrataram os seu serviços e foi responsável pela construção de várias moradias na povoação. Andava nesses trabalhos quando o então presidente da Junta o informou que o colocaria a encabeçar uma lista porque se queria retirar da vida política.

“Eu disse que não percebia nada de política mas ele dizia que não tinha nada que perceber, que o importante era que as pessoas me aceitavam bem”, relembrou. “Até estava receoso porque nunca me tinha metido nessas coisas, mas fiz três mandatos e ainda consegui fazer algumas obras”.

Durante os 12 anos em que esteve à frente da autarquia local, José recorda bons e maus momentos, a amizade que fez com os então presidentes da câmara de Bragança, primeiro José Luís Pinheiro, mais tarde Luís Mina; o carinho da população, mas também os problemas e a confrontação com o “poder”.

“Às vezes as pessoas pediam-me coisas que eu não podia fazer e não compreendiam quando lhes explicava que não podia. Algumas achavam até que eu podia fazer tudo e vinham ter comigo....”, contou.

Mas antes disso, José Augusto teve uma vida feita de suor e muito trabalho. Com apenas doze anos de idade, iniciou actividade como pedreiro, nos serviços florestais que então se tinham implementado na cidade, em 1935.

José vivia na aldeia de Rebordãos, com a mãe e dois irmãos e passava os dias entre a ajuda na lavoura e a construção dos seus próprios brinquedos pois, na altura, nem os havia e “nem que houvesse, não havia dinheiro para essas coisas”. Numa casa ao lado da sua vivia o “mestre dos serviços florestais” que, vendo a arte e engenho do pequeno, o aliciou a começar o trabalho.

“Gostou muito de mim e foi como um verdadeiro pai, ensinou-me a trabalhar”, recordou.

Na época “havia poucos artistas”, muitos tinham partido para as “terras do minério, como Paredes” e José Augusto era estimulado a aprender. Ascendeu a encarregado de obras e, desse tempo, há ainda recordações bem físicas: as casas florestais da serra de Montesinho, da serra da Nogueira, da Lombada, da Serra da Coroa, entre outras. Casas que, hoje em dia, José visita acompanhado de um dos três filhos.

“Poucas estão recuperadas, o que é pena. Eram casas muito boas”, lamenta.

Já maior de idade, casado e com três filhos, chegou a habitar uma dessas casas, em Gondesende. O trabalho era bom, tinha casa e algumas terras que podia cultivar. Apesar de estar longe da terra natal, gostava de ali viver e também ali fez amigos.

 

Passagem por África

Muitos aliciavam-no a aventurar-se por África onde, então, Portugal tinha colónias. Nunca pensou em partir até perder a mãe. Na correspondência com um familiar, repensou. Se continuasse em Gondesende, não teria possibilidades de colocar os três filhos a estudar.

“Naquele tempo não havia transportes como hoje e para os por aos três a estudar teria de pagar uma pensão”.

Ainda assim, a passagem de avião para Moçambique ainda era cara. Sem um contrato de trabalho, José tinha que pagar a viagem de ida e volta, como turista. Se ao fim de meio ano não conseguisse um emprego, teria de regressar.

“Diziam que aquilo era Portugal mas não era bem assim”.

Para partir, José teve então de recorrer à ajuda financeira do primo e teve de vender uma bicicleta motorizada, “um luxo, naquela época”. Chegado a Lourenço Marques, actual Maputo, empregou-se na construção civil e passou “um mau bocado”.

“Tive uma vida difícil quando lá cheguei. Encontrei um serviço de escravatura e ficava revoltado com certas coisas”, contou. Se não fosse o facto de dever dinheiro, “o único dinheiro que pediu emprestado em toda a vida”, teria regressado de imediato, mas assim não teve outro remédio que não fosse “aguentar”.

Insatisfeito, procurou ingressar nos caminhos-de-ferro e, depois de alguns pedidos e entrega de papelada, conseguiu a função de bagageiro e foi colocado no caminho de ferro da Beira, um porto de mar a quilómetros da capital. Aí conseguiu subir na carreira e chegou a condutor de primeira, ou seja, era dela responsabilidade de todos os movimentos que o comboio efectuasse.

Com a independência das colónias muitos foram os que regressaram a Portugal, mas José deixou-se ficar. “Os meus filhos andavam na universidade e não fazia sentido vir sem eles”.

Assinou então um contrato por mais dois anos, com os governos de Portugal e Moçambique. Poucos portugueses, na mesma situação, aguentaram cumprir o contrato até ao fim. É que, segundo se lembra, “havia muito ressentimento”. Quando os filhos quiseram vir para Portugal, José decidiu também regressar embora garanta que nunca lá teve problemas. Voltar a Portugal levou a que perdesse a casa para o Estado moçambicano e que, já na terra natal, fosse visto como “retornado”, um termo que nunca o ofendeu embora confesse que chegou a “ouvir cada uma...”.

Com 52 anos, José integrou os quadros portugueses da CP mas nunca foi chamado a prestar serviço. Ainda se recorda de ver passar os comboios e do sentimento de “estranheza” por ver que a terra natal pouco tinha evoluído.

“Lá os comboios levavam 500 ou 600 passageiros e os comboios de cargas tinham vagões que levavam aí umas 40 toneladas. Cá via-os passar com uma ou duas pessoas, não me pareceu que fosse viável”.

Decidido a construir a sua própria casa num local agradável, depressa começou a receber propostas de trabalho de familiares, vizinhos e amigos para que regressasse à construção civil.

“Ainda era novo, tinha que fazer alguma coisa”.

O pouco tempo livre que ia tendo, aproveitava-o a escrever os seus poemas e as suas histórias. Aproveitava ainda para ler e, se tivesse mais umas horinhas, ainda conseguia dedicar-se ao artesanato.

“À noite aproveitava para ler e escrever um bocadinho, quando me apetecia. Quando estava em Moçambique não me sobrava muito tempo porque trabalhávamos, às vezes, 20 horas. Mas lia os livros da escola dos meus filhos”, contou.

 

Um livro de poemas

A sua dedicação à literatura e à escrita só seria maior quando foi eleito presidente da junta. Escreveu sobre a sua terra natal, sobre o património existente, sobre si próprio até. Na casa paroquial encontrou o registo de baptismo e descobriu que tinha sido sopiado em criança – um uso das terras transmontanas e minhotas. Significa isto que quando nasceu, teve de ser baptizado “à pressa” por alguém católico porque corria risco de vida.

Escreveu sobre isso também e sobre os tempos de solteiro, sobre os seus sentimentos, sonhos e esperança. Quando perdeu a esposa, escreveu ainda mais, num desejo de ocupar ao máximo o tempo livre e o espaço deixado vazio.

Um dia, um dos seus filhos perguntou-lhe em que passava o tempo. Mostrou-lhe então o que escrevia. Tinha tudo passado à máquina, na primeira máquina que teve e que comprou ainda em Moçambique.

O filho, sensibilizado, decidiu então levar-lhe um computador e ensinar o pai a trabalhar com as novas tecnologias. José garante que ainda hoje “não sabe trabalhar com o computador”, mas é com destreza que mostra, orgulhoso, algumas fotos tiradas no Centro Social de Rebordãos e alguns poemas que vai escrevendo.

No Natal de 2009, José teve a grande surpresa da sua vida: os filhos ofereceram-lhe um livro com todos os seus poemas e textos que escreveu.

“Eu quando abri e vi até comentei – olha que engraçado, um autor com o mesmo nome que eu! Só depois vi que eram os meus poemas, fiquei muito emocionado”, contou.

São mais de duzentas páginas às quais José poderia acrescentar ainda mais com o que tem escrito nos últimos meses.

“É como passo tempo”, diz com a simplicidade de quem apenas se senta para comer. Nos dias em que o tempo permite, vai a pé até ao Centro Social ou aproveita para tratar da horta e dos castanheiros. Este ano ainda não pegou na bicicleta, embora confesse que já tem vontade. Recentemente terminou de ler o romance “Fúria Divina” e está já curioso com os livros que um dos seus filhos lhe prometeu trazer.

No seu pequeno atelier tem ainda em mãos duas casas da Sagrada Família e um carro de bois em miniatura para finalizar.

Embora receie que a idade lhe comece a pesar, José acredita que enquanto tiver força de vontade, o espírito permanecerá sempre jovem.

 

 

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